A implosão moral
ALCIONE ARAÚJO
FOLHA DE SP - 12/09/11
Não se sabe como nem onde começou. Depois da enchente que cobriu casas e árvores do bairro, o rumor se espalhou em roda de esquina, ponto de ônibus e mesa de bar. Cada novidade, um susto. A água infiltrou. Viram frincha no cimento. A ferragem apodreceu. O piso mexeu. O pilar tremeu. Veio o pânico: a ponte vai cair! Instado, o prefeito disse: “Qualquer ponte um dia pode cair!”
O povo se alvoroçou. Mendigos que viviam embaixo da ponte foram arrastados com tralhas e trecos. Em cima, liberaram para pedestre; carroça, bicicleta e moto cruzavam juntos. Carro só um a um, e o povo esperava a vez, assustado. Caminhão e carreta, ninguém se atrevia, assistiam da margem, benzendo-se, pescadores tiravam a canoa de baixo, e as lavadeiras corriam barranco acima.
Candidato à reeleição, o prefeito sentiu que a situação poderia beneficiá-lo, e aprovou a ideia do assessor: demolir a ponte num grande evento político. A técnica de implosão começava a ser usada, era atração na TV e certeza de repercussão nacional da candidatura. E a imediata construção da nova ponte seria bela promessa para o novo mandato! A prefeitura contratou a implosão.
Na véspera o bairro parou. Interditaram a ponte, isolaram a área, afastaram canoas e barcos, proibiram pescar, nadar e lavar roupa no rio. O trânsito empacou, turistas lotaram hotéis. Câmeras de TV transmitiam flashes ao vivo.
No dia D, ocupando os lados da ponte e as margens do rio feito estádio cheio, o povo esperava o evento num sol que torrava os miolos. O chefe da implosão, de capacete, óculos protetores e macacão abóbora, parecia saído de desenho animado. Afobado, ia e vinha sobre e sob a ponte. Nos ninhos de dinamite, em furos na estrutura, gesticulava ao séquito, que seguia os fios até o detonador, onde o prefeito, sob a tenda colorida, posava para a TV e acenava à torcida.
O tempo passava, o prefeito suava, a turba chiava e o chefe fazia seu show, quando os mendigos burlaram a guarda e invadiram a área, para alegria da turba, que uivava olé, a cada finta. Desceram aos moquifos, e a turba delirou. Logo, subiram arrastados. A vaia começou, e se estendeu ao prefeito, que pediu pressa ao chefe. Esvaziada a área, a implosão foi autorizada. O prefeito acenou à TV e acionou o detonador. A explosão espantou peixes, pássaros, bichos e homens. O céu, a terra e a água sumiram na poeira e fumaça. Após um silêncio de admiração, ouviram-se gritos, assovios e aplausos de euforia.
À medida que a fumaça subia e a poeira baixava, a turba reconhecia a velha ponte, no mesmo lugar, inteira, intocada, inabalada. O chefe tirou o capacete e coçou a cabeça. Atarantado, o prefeito ouviu a vaia crescer e pedras caindo ao seu redor. Aos poucos, ergueu-se um vozerio ritmado: “A ponte não caiu! O prefeito sem moral vai pra... ponte que caiu”. Não foi. Sem moral, e reeleito!
E a alegre população pagou pela implosão de uma ponte que utiliza até hoje.
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