O assassinato da língua portuguesa
Amauri Segalla e Bruna Cavalcanti
REVISTA ISTO É
Livro distribuído pelo MEC que tolera erros gramaticais como "os livro" e "nós pega" causa estragos no aprendizado de meio milhão de brasileiros e atrapalha o desenvolvimento do País
Imagine a seguinte cena: na sala de aula, o adolescente levanta o braço para perguntar à professora se ele pode falar "nós pega o peixe". Ato contínuo, a mestre pede ao jovem para consultar o livro "Por uma Vida Melhor" e dar uma olhada na página 16. Sedento por conhecimento, o aluno acompanha com olhos curiosos enquanto a docente lê o trecho proposto. O garoto, enfim, sacia a dúvida: sim, ele pode falar "nós pega o peixe". Está escrito ali, claro como a soma de dois mais dois em uma cartilha de matemática. Com nuances diferentes, a situação descrita acima provavelmente vai se repetir em milhares de escolas públicas de todo o País. Não é difícil calcular os efeitos nefastos no futuro dos 485 mil estudantes do ensino fundamental que devem receber a obra distribuída pelo Ministério da Educação por meio do Programa Nacional do Livro Didático. De autoria da professora Heloísa Campos e outros dois educadores, "Por uma Vida Melhor" defende a ideia de que erros gramaticais são aceitáveis na língua falada. Para Heloísa, frases como "os livro ilustrado mais interessante estão emprestado" (tal pérola aparece em destaque no material) não podem ser condenadas se forem expressas verbalmente. Mesmo que em uma sala de aula.
Autora desconhecida, sem grandes feitos na área da educação, Heloísa se viu no centro de uma polêmica que envolveu escritores, linguistas e professores. Por mais que alguma voz aqui e ali tenha defendido os argumentos de Heloísa, além dos eternos demagogos de plantão, a maioria esmagadora condenou seus métodos de ensino. Uma das mais importantes escritoras brasileiras, Nélida Piñon tem autoridade - como poucos, a propósito - para falar sobre a língua portuguesa. Eis seu veredicto: "O livro confirma a tese de que esteve sempre em curso no Brasil o projeto de manter uma legião de brasileiros como cidadãos de segunda classe", diz a autora de "Vozes no Deserto". Escritor que conseguiu a rara combinação de fazer sucesso junto ao público e, ao mesmo tempo, conquistar a crítica, Fernando Morais está indignado. "Esse livro é uma barbaridade", diz o biógrafo do jornalista Assis Chateaubriand. "Trata-se de um desastre, o oposto do que é pregado por uma pessoa minimamente civilizada." Linguista com décadas de serviços prestados à educação brasileira e ex-professor da Unifesp, Francisco da Silva Borba amplia a discussão. "O aluno tem que ser ensinado", afirma. "Se ele tolerar infração às regras, então para que serve a escola?"
Sob diversos aspectos, "Por uma Vida Melhor" tem potencial para piorar a existência de meio milhão de brasileiros. Se realmente for levado a sério pelas escolas públicas, a obra vai condenar esses jovens a uma escuridão cultural sem precedente. Ao dificultar o aprendizado da norma correta, os professores da ignorância terão criado uma espécie de "apartheid linguístico", para usar uma expressão do ex-ministro da Educação Cristovam Buarque. De um lado, os ricos e bem instruídos. De outro, os jovens reféns da falta de conhecimento gramatical. Se é evidente que o livro assassina a língua portuguesa, na medida em que diz que o aluno pode, na fala, escolher usar a concordância ou não, por que diabos ele teve o aval do MEC? Procurado, Fernando Haddad, o atual ministro da pasta, não quis se pronunciar (leia quadro). A autora Heloísa Campos pelo menos não se furtou ao dever de defender sua obra. "Falar 'os livro' do ponto de vista da linguagem popular não é um erro", diz a professora. "A nossa abordagem é de acolher a fala que o aluno traz da sua comunidade. A cultura dele é tão válida quanto qualquer outra."
Embora não faça referências diretas, Heloísa repete as máximas do livro "Preconceito Linguístico", do professor e escritor Marcos Bagno, que faz certo sucesso entre educadores modernos por colocar questões políticas e ideológicas na discussão. Bagno afirma que a linguagem reproduz desigualdades sociais - como se isso fosse uma descoberta assombrosa. É claro que sim. A questão não é essa. Em vez de manter o jovem que não domina a língua imerso na triste ignorância - a pretexto de preservar suas raízes culturais -, por que não retirá-lo de lá? Falar corretamente não é o primeiro passo para, no avanço seguinte, escrever melhor? Escrever melhor não representa uma oportunidade de crescimento pessoal e profissional? Tente conseguir um emprego falando "nós vai" e você certamente terá suas chances reduzidas a zero. É simples assim.
Pode ser bonito, pode ser simpático, pode ser ousado defender o direito de as pessoas cometerem barbaridades gramaticais, mas na vida prática isso é uma tragédia. É claro que todos nós cometemos erros ao falar - intencionais ou não -, como é óbvio que, em certos ambientes, se expressar como um decano da linguística pode soar arrogante e desnecessário. Mas, na vida real, falar minimamente direito só traz vantagens e são justamente essas vantagens que autores como Heloísa Campos desprezam. "Uma coisa é compreender a evolução da língua, que é um organismo vivo, a outra é validar erros grosseiros", diz Marcos Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras. "É como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre 12, na periferia ou no palácio." Mesmo para aqueles que, em tese, defendem a abordagem de Heloísa, o livro é visto como uma obra menor. "Não há nenhuma novidade no que o livro diz", afirma o professor de português Pasquale Cipro Neto. "Ele tem uma ou outra passagem meio ingênua, pueril, mas no todo cumpre o seu papel."
Para um país que nos últimos anos vem registrando índices de crescimento assombrosos e tem a ambição de reduzir o abismo da desigualdade social, a educação é talvez a arma mais poderosa que existe. Nesse campo, conforme estudos internacionais demonstram, o Brasil está encalhado na rabeira global. Aqui pouco se lê, pouco se estuda, pouco valor se dá ao conhecimento. Não é hora de mudar? A língua, como já observaram pesquisadores importantes, é um elemento que traduz a identidade nacional. É um instrumento de unificação - e não de segregação entre os que sabem e os que não merecem saber. Ela é, acima de tudo, um princípio de cidadania. Diante da onda de protestos provocada pela notícia da distribuição de "Por uma Vida Melhor", é possível que o livro encontre alguma resistência entre os professores. Na semana passada, a procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, afirmou que a Justiça provavelmente receberá uma avalanche de ações contra a publicação. Ela própria foi incisiva em seu blog. "Vocês estão desperdiçando dinheiro público com material que emburrece em vez de instruir", escreveu Janice. "Essa conduta é inadmissível." Se as ações vingarem, os jovens terão a chance de dizer, alto e bom som: "Nós pegamos o peixe."
As trapalhadas de Haddad
A polêmica sobre os livros didáticos distribuídos pelo MEC não foi a única a atormentar o ministro Fernando Haddad nos últimos tempos. O episódio da fraude no Enem em 2009, quando foram roubadas provas dentro da gráfica responsável pela confecção dos testes, foi mais uma de suas trapalhadas. No ano seguinte, constatou-se erro na impressão das provas - e de novo a responsabilidade recaiu sobre o Ministério da Educação. À época, os exames correram sério risco de serem cancelados, o que acabou não acontecendo. Os equívocos não param por aí. Neste ano, surgiu a denúncia de fraudes no Prouni, com estudantes beneficiados pelo programa, mas que não se enquadravam nos limites de renda. Ao mesmo tempo, veio à tona o episódio da sobra de vagas, principalmente no caso de bolsas parciais e no programa de educação a distância, o que demonstraria uma falha administrativa. Para aumentar o desgaste de Haddad, entidades internacionais de fomento não cansam de advertir que o grande gargalo ao desenvolvimento do Brasil continua a ser o baixo nível da educação.
Um comentário:
LÍNGUA
Há muitas línguas
A língua do Pê
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Há muitas línguas
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De “trapo”
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De Catalão
De Libra
De fibra
De Louis Braille!
Há línguas no baile
Há muitas línguas
A língua indiferente do indiferente
A língua oposta do oposto
A língua nacional do irracional
A língua do jornal
Do sinal
Do santo
Do Esperanto
Do Romeno
Do tormento
Do Chico Bento!
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A língua do astro
Do roqueiro
Do grafiteiro
Do “jeitinho brasileiro”!
Há línguas no mundo inteiro!
A galega
A francesa
A espanhola...
Há língua portuguesa!
Filha do Latim
Falada por Jobim
Em Portugal,
Angola,
Guiné-Bissau... Cresceu;
E a tribo Guarani também aprendeu!
Língua da Ilha da Madeira...
Do Brasil!
À brasileira!
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Do jovem
Do menino
Do mineiro...
Português brasileiro
Também é Português verdadeiro!
Há línguas e línguas
Há muitas línguas
A língua Viperina
A Neolatina
A analfabética
A poética
A Materna
A “eterna”...
A língua da “guerra”,
A língua Viva,
E viva todas as línguas da Terra!
A verbal
A musical
A gestual
A obscena
A da cena...
A língua da Lei
Da Canção
Da Boa Razão
Do Destino
Dos Meios
De Afonso Arinos...!
Há língua nas leis do mundo inteiro!
Com a língua se acha o respeito
O direito
A dignidade
A amizade
A razão
A compreensão...
O caminho da inclusão!
Língua pra falar
Pra amar
Pra participar
Pra ler
Pra escrever...
Pra sonhar!
Com a língua se viaja
Pela imagem
Pela coragem...
Pelos mares!
Com a língua se descobre novos lugares
Outras terras
Outras Serras
Outros saberes!
Assim a quis
Machado de Assis
Com a língua Machado criava
Os dias quentes de verão
Os jardins da primavera
E o beijo dos beija-flores!
E recriava o romance dos amores!
E no jardim da infância
Um pouco de lembrança
Das cores,
Das flores...
Há muitas línguas
A língua que forma
Que informa
Que inclui
Que exclui...
Línguas que se destroem
Línguas que se constroem
Línguas no trem...
Língua é poder
É força
E domina quem a tem!
Há muitas línguas
Há homens sem língua
Há homens de língua
Há, porém, homens sem vozes
Porque lhes roubam a língua!
Mata-se o Homem, mata-se a língua
Mata-se a língua, mata-se o homem
E mata-se todo o mundo!
Muda-se o Homem, muda-se a língua;
Muda-se o tempo, mudam-se as línguas,
Muda-se a língua, muda-se todo o mundo!
Há muitas línguas
Há sempre novidades,
Diferentes em toda e qualquer cidade;
E do mau uso da língua
Ficam-se as marcas na sociedade
E do Casimiriano as saudades!
A língua define origem
Traça os destinos
Ilumina na escuridão
Quebra as correntes da escravidão
Expande a mente
Torna seres mais conscientes!
Porém, com a sobrevivência na mente
O aprendizado no chão
E a incerteza na frente
Sem lei nem grei:
É a língua que encontrarei!
No entanto, resta-me a esperança
De um estalar de latidos da consciência
E ainda na minh’ existência
Poder ver
Um belo saber
Um belo viver
E toda criança ser bem sucedida quando crescer!
(Georgeana Alves)
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