sábado, maio 21, 2011

JOSÉ MIGUEL WISNIK - Dona Norma



Dona Norma
JOSÉ MIGUEL WISNIK

O GLOBO - 21/05/11

O imbróglio da vez é a discussão sobre o manual de ensino da língua portuguesa distribuído pelo MEC, chamado "Para uma vida melhor", da autoria de Heloisa Ramos. Li na imprensa, vi nos blogs e ouvi no rádio do carro vozes, desde sentenciosas a sardônicas e sarcásticas, dizendo que se tratava de uma descarada proposta de ensino do português pelo método invertido, preconizando o erro de concordância, o desvio sintático e o assalto à gramática. Criticava-se a adoção do "lulês" como idioma oficial da escola brasileira. Leio o capítulo do livro em questão e vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importância da pontuação, da concordância e da boa ortografia na língua escrita. Onde está o erro?

Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente, com ou sem rendimento político imediato. Na verdade, o livro assume, para efeitos pedagógicos, uma noção que se tornou trivial para estudantes de Letras desde pelo menos quando eu entrei no curso, em 1967. Os estudos linguísticos mostravam que a prática das línguas é sujeita a muitas variantes regionais, sociais, e que a chamada "norma culta", preconizada pelos gramáticos, é uma entre outras variantes da língua, não necessariamente a mais, ou a única "correta". Desse ponto de vista, científico e não normativo, procura-se contemplar a multiplicidade das falas, reconhecidas na sua eficácia comunicativa, sem privilegiar um padrão verbal ditado pelos segmentos letrados como único a ser seguido.

Discutirei adiante algumas consequências pedagógicas disso. Mas a que me parece inquestionável, e adotada com propriedade no livro de Heloisa Ramos, é a importância de não se estigmatizar os usos populares da língua, reconhecendo em vez disso a validade do seu funcionamento. É nessa hora que ela dava como exemplo a famigerada frase "Nós pega o peixe", ou, então, "Os menino pega o peixe". A autora não diz que é assim que se deve escrever. Mas também não deprecia a expressão: preconceitos à parte, é preciso reconhecer que no seu uso comum a frase funciona, porque a marca do plural no pronome ou no artigo é suficiente para indicar que a ação é exercida por um conjunto de meninos, e não por um só. Desse ponto de vista, eminentemente pragmático, nenhum erro.

A seguir, no mesmo espírito pragmático, o livro afirma claramente a importância de que a escola promova o domínio da norma culta, ligado à língua escrita, justificado pela sua necessidade em situações específicas (aqui virá a minha discordância). Dá exemplos de como corrigir um texto mal escrito, mostrando, dentro dos melhores critérios, como ele deve ganhar coesão interna, articulação sintática, clareza nos seus recortes (pontuação) e seguir os critérios ortográficos.

A grita contra o livro, por aqueles que, imagino, não o leram, é uma estridente confirmação, em primeiro lugar, daquilo que o próprio livro diz e, em segundo lugar, daquilo que ele não diz, mas que deveria dizer.

Afirmar cegamente, com alarme e com alarde, que o livro é um atentado, tornado oficial, à língua portuguesa, pelo respeito localizado que ele dá às variantes populares de fala que não usam extensivamente as flexões, isto é, as normas letradas de concordância, é um sintoma ignorante e disseminado de que se concebe a língua como um instrumento de prestígio, de privilégio e de poder.

Mais que isso, a defesa exaltada e capciosa da suposta correção linguística, desconsiderando todo o resto, é uma desbragada demonstração de ignorância em nome da denúncia da sua perpetuação. Culta, neste caso, é de uma incultura cavalar. O tom desinformado e espalhafatoso da denúncia encobre, mal, aquilo de que ele tenta fugir: o nosso analfabetismo crônico, difuso, contagiante.

Hélio Schwartsman, em compensação, assim como Cristovão Tezza no programa de Monica Waldvogel, disseram coisas importantes e equilibradas. Hélio lembra que a passagem do latim às línguas românicas, o português incluído, só se deu graças às províncias que passaram a falar um latim tecnicamente estropiado, sem as suas declinações clássicas. Sem essa dinâmica e o correspondente afrouxamento flexional, estaríamos até hoje falando latim e usando as cinco declinações.

O inglês, por sua vez, é muito menos flexional que o português. A frase "the boys get the fish", por exemplo, que funciona perfeitamente para marcar o plural, é, do ponto de vista estrutural, uma espécie de "nós pega o peixe" institucionalizado.

O horizonte do pragmatismo é o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC. O domínio da norma culta é justificado, nele, para que o falante tenha "mais uma variedade" linguística à sua disposição, para que não sofra preconceito, para que se desincumba em situações formais que assim o exigem. É muito pouco. A norma culta não é nem um mero adereço de classe nem apenas uma variedade à disposição do aluno para ele usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos. A educação pela língua não pode ser pensada apenas como um instrumento de adaptação às contingências. A escrita é um equipamento universal de apuro lógico, que está embutido na estrutura de uma língua dada. Mergulhar nela e nas exigências que lhe são inerentes é um processo de autoconsciência e um salto mental de grandes consequências.

Não se pode fazer por menos. Além de "Para uma vida melhor", tem que ser também "Para uma vida maior".

Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente

Um comentário:

Miriam Menascé disse...

Carta enviada ao autor:

Caro José Miguel Wisnik

Li, com atenção, a sua crônica sobre o livro da professora Heloísa Ramos “Para uma Vida Melhor” e fiz algumas reflexões.
Você pergunta onde está o erro do livro.
O equívoco, a meu ver, está em dirigir o conteúdo do livro aos alunos. Você mesmo afirma que, “o livro assume, para efeitos pedagógicos, uma noção que se tornou trivial para os estudantes de Letras…”.
Presume-se, então, que o professor seja capaz de dar uma bela aula sobre a multiplicidade das falas, sem precisar escrever, no quadro de giz, as frases coloquiais inadequadas (sic) e sem precisar recorrrer ao polêmico livro, que, registrando-as, só acentua
a inadequação, ao fixá-las, visualmente, falha grave.
Ninguém precisa paternalizar o estudante que fala “os menino pega o peixe”, com a preocupação de retirar o estigma que o uso popular da língua acarreta.
O próprio estudante sabe que sofre preconceitos, o tempo todo, apesar de conseguir comunicar-se. Vai até achar que o professor está “fazendo média” com ele, ou que o professor não sabe nada.
Em seguida, a autora do livro afirma o que é evidente, tanto para o professor, como para o aluno: a importância do domínio da norma culta.
Alardes e alarmes à parte, todos acabam por reconhecer que vamos à escola, para aprimorar a nossa escrita e a nossa fala. Todo mundo já sofreu, na pele, discriminação, por não falar ou escrever, adequadamente. Conheço executivos que não escrevem relatórios, com medo de cometerem erros.
Você escreve muito bem, e deve falar ainda melhor. Custa-me crer que subestime a importância da língua como um instrumento de poder. Não é preciso ir muito longe: basta lembrar como alguns grupos isolam-se e adquirem um status privilegiado, através de jargões, como os criados pelos advogados, economistas, etc., excluindo-nos, pobres mortais, que não conseguimos acompanhar os seus
complexos raciocínios.
Acredito que a “defesa exaltada” da correção linguística
seja, na verdade, um carinho e uma grande preocupação com a nossa tão maltratada língua portuguesa e não “uma desbragada demonstração de ignorância em nome da denúncia da sua perpetuação”, como diz.
Ainda bem que estamos refletindo sobre o ensino da língua portuguesa. Ainda bem que a imprensa abre espaço para o debate sobre a nossa língua.
Miriam Menascé