Mineira é melhor que baiana
MARCELO RUBENS PAIVA
O ESTADO DE SÃO PAULO - 21/05/11
Na minha infância, era comum ouvir o comentário de que mineiras eram melhores do que baianas. Na sala de estar de uma residência de Higienópolis, Jardins, Ipanema ou Leblon, no papinho entre familiares e amigos.
Melhores no quê?
No passar, arrumar e cozinhar. No tanque. Agachadas com um pano no piso. Penduradas com um espanador nas janelas.
No quartinho dois metros por dois, cheirando a perfume, esmalte e sabonete baratos, forrado por pôster de um galã bem penteado, com sucessos do brega no dial - Antônio Marcos, Fábio Júnior, Odair José, Nelson Ned, Waldick Soriano...
Que falavam de amor e um mundo melhor para emigrantes anônimas e solitárias, que passavam mais tempo com os filhos da patroa do que a própria.
E com quem muitos meninos da geração pré-revolução sexual deram os primeiros passos na escorregadia e excitante trilha da iniciação sexual.
Meninas que não conheciam a cidade acordavam antes de todos e dormiam exaustas de luz acesa. Que não tinham aonde ir nos fins de semana. A não ser que um porteiro as convidasse para um passeio pelo bairro.
É, as domésticas mineiras desbancaram a hegemonia baiana. Falavam delas como da chegada nas prateleiras de um novo produto de limpeza que rendia mais.
E o ciclo do novo "tráfico" seguiu a mesma rota: a empregada de uma amiga chamava por carta uma parente ou colega lá do interior de Minas.
Obrigações: ser honesta, limpinha, com bons antecedentes, e entrar pelo elevador de serviço, pois aqui é assim, existem as entradas de serviço e social. Por favor, não errar de elevador. Sim, "social" é para a patroa e filhos.
Detalhe: nos apartamentos, também há duas portas, a da cozinha e da sala; entrar pela cozinha.
Garantias da lei: carteira assinada, décimo terceiro e férias. Diferentemente de outras profissões, o Fundo de Garantia é opcional. Afinal, é uma outra categoria de trabalho. É "apenas" doméstico.
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Hoje, a rota da doméstica segue pelas linhas do transporte coletivo urbano. Não é preciso importar mão de obra. Ela está disponível nas favelas e morros que cercam os bairros de quem consegue pagar.
Delfim Netto disse na semana em que passou em branco o 13 de maio, no programa Canal Livre, da Band, "quem teve este animal, teve, quem não teve nunca mais vai ter".
Indicava que a mudança da estrutura salarial do setor de serviços está tornando mais difícil encontrar domésticas disponíveis no mercado.
Delfim, ou melhor, "professor Delfim", pediu desculpas depois pela gafe.
Foi o mentor econômico do "milagre brasileiro" no período da ditadura e da tese que atribuía ao crescimento da economia o papel de distribuir a renda. Se o bolo crescesse, todos sairiam ganhando automaticamente uma fatia maior.
O governo Lula, com quem Delfim se aliou, pôs em prática a receita, mas interferiu no cozimento.
Não basta assistir ao crescimento pela janela do forno. O Estado deve intervir para dividir a renda. Não apenas com programas de combate à fome e miséria, mas com crédito subsidiado, barato e diminuição de impostos de produtos para as classes C e D.
O PT trouxe para o consumo aqueles que antes nem chegavam perto e transformou a rotina da patroa, que não consegue mais pagar por um "animal" doméstico.
Talvez ela consiga pagar por uma diarista, que graças aos chineses pode usar genéricos das mesmas grifes, escutar Racionais no seu MP3 ou DVD pago em 36 vezes no feirão das Casas Bahia, símbolo do lulismo econômico.
Deve-se combinar o serviço pelo celular, símbolo do privatismo tucano.
A profissional doméstica agora prefere não dormir no serviço, provavelmente estuda à noite e se transformou no novo e poderoso nicho das grandes marcas de perfumes, sabonetes e esmaltes.
Só a renda distribuída fará o Brasil parar de dividir seus cidadãos em "social" e "serviço". Ou em humanos e animais.
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Foi uma semana marcada pelo protesto da gente diferenciada e gafes nas redes sociais, que têm 600 milhões de vigilantes no Facebook e 120 milhões no Twitter. Postaram:
Rafinha Bastos, no dia das mães: "Ae órfãos! Dia triste hoje, hein?"
Danilo Gentili, sobre os "velhos" de Higienópolis que temem uma estação de metrô: "A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz."
Amanda Régis, torcedora do Flamengo, time eliminado da Copa do Brasil pelo Ceará: "Esses nordestinos pardos, bugres, índios acham que têm moral, cambada de feios. Não é à toa que não gosto desse tipo de raça."
Ed Motta, ao chegar a Curitiba: "O Sul do Brasil como é bom, tem dignidade isso aqui. Sim porque ooo povo feio o brasileiro rs. Em avião dá vontade chorar rs. Mas chega no Sul ou SP gente bonita compondo o ambiance rs."
Quando um leitor replicou que Motta não era "um arquétipo de beleza", ele respondeu que estava "num plano superior". "Eu tenho pena de ignorantes como vc... Brasileiros...", escreveu. "A cultura que eu vivo é a CULTURA superior. Melhor que a maioria ya know?"
E na MTV, a Casa dos Autistas, quadro humorístico, chocou pelo mau gosto.
Todos pediram desculpas depois. Danilo, um dos maiores humoristas de stand-up que já vi, recebeu telefonema do departamento comercial da Band, pedindo para tirar o comentário. Ed Motta se revoltou contra a imprensa. Pergunta se temos o direito de reproduzir seus escritos particulares.
A internet trouxe a incrível rapidez na troca de informações e espaço para exposição de ideias. Alguns se lambuzam. Dizem que são contra as patrulhas do politicamente correto.
Mas como ficam as domésticas ofendidas, os órfãos recentes, aqueles que perderam parentes em Auschwitz, os nordestinos e os pais de autistas?
Tomara que, depois do pensamento grego, democracia, Renascença, a revolução industrial e tecnológica nos iluminem. O preconceito não é apenas sintoma de ignorância, mas lapsos de um narcisista. Ele nunca vai acabar?
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Enquanto no Itaú Cultural, um símbolo de excelência em apoio às artes e alta tecnologia, em plena Avenida Paulista, uma mãe foi expulsa por amamentar o filho em público na exposição do Leonilson, artista que sofreu inúmeros preconceitos, morto vítima da aids. Os ânimos estão acirrados.
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