sábado, maio 21, 2011

Amauri Segalla e Bruna Cavalcanti - O assassinato da língua portuguesa


O assassinato da língua portuguesa 
 Amauri Segalla e Bruna Cavalcanti
REVISTA ISTO É

Livro distribuído pelo MEC que tolera erros gramaticais como "os livro" e "nós pega" causa estragos no aprendizado de meio milhão de brasileiros e atrapalha o desenvolvimento do País


Imagine a seguinte cena: na sala de aula, o adolescente levanta o braço para perguntar à professora se ele pode falar "nós pega o peixe". Ato contínuo, a mestre pede ao jovem para consultar o livro "Por uma Vida Melhor" e dar uma olhada na página 16. Sedento por conhecimento, o aluno acompanha com olhos curiosos enquanto a docente lê o trecho proposto. O garoto, enfim, sacia a dúvida: sim, ele pode falar "nós pega o peixe". Está escrito ali, claro como a soma de dois mais dois em uma cartilha de matemática. Com nuances diferentes, a situação descrita acima provavelmente vai se repetir em milhares de escolas públicas de todo o País. Não é difícil calcular os efeitos nefastos no futuro dos 485 mil estudantes do ensino fundamental que devem receber a obra distribuída pelo Ministério da Educação por meio do Programa Nacional do Livro Didático. De autoria da professora Heloísa Campos e outros dois educadores, "Por uma Vida Melhor" defende a ideia de que erros gramaticais são aceitáveis na língua falada. Para Heloísa, frases como "os livro ilustrado mais interessante estão emprestado" (tal pérola aparece em destaque no material) não podem ser condenadas se forem expressas verbalmente. Mesmo que em uma sala de aula.

Autora desconhecida, sem grandes feitos na área da educação, Heloísa se viu no centro de uma polêmica que envolveu escritores, linguistas e professores. Por mais que alguma voz aqui e ali tenha defendido os argumentos de Heloísa, além dos eternos demagogos de plantão, a maioria esmagadora condenou seus métodos de ensino. Uma das mais importantes escritoras brasileiras, Nélida Piñon tem autoridade - como poucos, a propósito - para falar sobre a língua portuguesa. Eis seu veredicto: "O livro confirma a tese de que esteve sempre em curso no Brasil o projeto de manter uma legião de brasileiros como cidadãos de segunda classe", diz a autora de "Vozes no Deserto". Escritor que conseguiu a rara combinação de fazer sucesso junto ao público e, ao mesmo tempo, conquistar a crítica, Fernando Morais está indignado. "Esse livro é uma barbaridade", diz o biógrafo do jornalista Assis Chateaubriand. "Trata-se de um desastre, o oposto do que é pregado por uma pessoa minimamente civilizada." Linguista com décadas de serviços prestados à educação brasileira e ex-professor da Unifesp, Francisco da Silva Borba amplia a discussão. "O aluno tem que ser ensinado", afirma. "Se ele tolerar infração às regras, então para que serve a escola?"

Sob diversos aspectos, "Por uma Vida Melhor" tem potencial para piorar a existência de meio milhão de brasileiros. Se realmente for levado a sério pelas escolas públicas, a obra vai condenar esses jovens a uma escuridão cultural sem precedente. Ao dificultar o aprendizado da norma correta, os professores da ignorância terão criado uma espécie de "apartheid linguístico", para usar uma expressão do ex-ministro da Educação Cristovam Buarque. De um lado, os ricos e bem instruídos. De outro, os jovens reféns da falta de conhecimento gramatical. Se é evidente que o livro assassina a língua portuguesa, na medida em que diz que o aluno pode, na fala, escolher usar a concordância ou não, por que diabos ele teve o aval do MEC? Procurado, Fernando Haddad, o atual ministro da pasta, não quis se pronunciar (leia quadro). A autora Heloísa Campos pelo menos não se furtou ao dever de defender sua obra. "Falar 'os livro' do ponto de vista da linguagem popular não é um erro", diz a professora. "A nossa abordagem é de acolher a fala que o aluno traz da sua comunidade. A cultura dele é tão válida quanto qualquer outra."

Embora não faça referências diretas, Heloísa repete as máximas do livro "Preconceito Linguístico", do professor e escritor Marcos Bagno, que faz certo sucesso entre educadores modernos por colocar questões políticas e ideológicas na discussão. Bagno afirma que a linguagem reproduz desigualdades sociais - como se isso fosse uma descoberta assombrosa. É claro que sim. A questão não é essa. Em vez de manter o jovem que não domina a língua imerso na triste ignorância - a pretexto de preservar suas raízes culturais -, por que não retirá-lo de lá? Falar corretamente não é o primeiro passo para, no avanço seguinte, escrever melhor? Escrever melhor não representa uma oportunidade de crescimento pessoal e profissional? Tente conseguir um emprego falando "nós vai" e você certamente terá suas chances reduzidas a zero. É simples assim.

Pode ser bonito, pode ser simpático, pode ser ousado defender o direito de as pessoas cometerem barbaridades gramaticais, mas na vida prática isso é uma tragédia. É claro que todos nós cometemos erros ao falar - intencionais ou não -, como é óbvio que, em certos ambientes, se expressar como um decano da linguística pode soar arrogante e desnecessário. Mas, na vida real, falar minimamente direito só traz vantagens e são justamente essas vantagens que autores como Heloísa Campos desprezam. "Uma coisa é compreender a evolução da língua, que é um organismo vivo, a outra é validar erros grosseiros", diz Marcos Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras. "É como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre 12, na periferia ou no palácio." Mesmo para aqueles que, em tese, defendem a abordagem de Heloísa, o livro é visto como uma obra menor. "Não há nenhuma novidade no que o livro diz", afirma o professor de português Pasquale Cipro Neto. "Ele tem uma ou outra passagem meio ingênua, pueril, mas no todo cumpre o seu papel."

Para um país que nos últimos anos vem registrando índices de crescimento assombrosos e tem a ambição de reduzir o abismo da desigualdade social, a educação é talvez a arma mais poderosa que existe. Nesse campo, conforme estudos internacionais demonstram, o Brasil está encalhado na rabeira global. Aqui pouco se lê, pouco se estuda, pouco valor se dá ao conhecimento. Não é hora de mudar? A língua, como já observaram pesquisadores importantes, é um elemento que traduz a identidade nacional. É um instrumento de unificação - e não de segregação entre os que sabem e os que não merecem saber. Ela é, acima de tudo, um princípio de cidadania. Diante da onda de protestos provocada pela notícia da distribuição de "Por uma Vida Melhor", é possível que o livro encontre alguma resistência entre os professores. Na semana passada, a procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, afirmou que a Justiça provavelmente receberá uma avalanche de ações contra a publicação. Ela própria foi incisiva em seu blog. "Vocês estão desperdiçando dinheiro público com material que emburrece em vez de instruir", escreveu Janice. "Essa conduta é inadmissível." Se as ações vingarem, os jovens terão a chance de dizer, alto e bom som: "Nós pegamos o peixe."

As trapalhadas de Haddad

A polêmica sobre os livros didáticos distribuídos pelo MEC não foi a única a atormentar o ministro Fernando Haddad nos últimos tempos. O episódio da fraude no Enem em 2009, quando foram roubadas provas dentro da gráfica responsável pela confecção dos testes, foi mais uma de suas trapalhadas. No ano seguinte, constatou-se erro na impressão das provas - e de novo a responsabilidade recaiu sobre o Ministério da Educação. À época, os exames correram sério risco de serem cancelados, o que acabou não acontecendo. Os equívocos não param por aí. Neste ano, surgiu a denúncia de fraudes no Prouni, com estudantes beneficiados pelo programa, mas que não se enquadravam nos limites de renda. Ao mesmo tempo, veio à tona o episódio da sobra de vagas, principalmente no caso de bolsas parciais e no programa de educação a distância, o que demonstraria uma falha administrativa. Para aumentar o desgaste de Haddad, entidades internacionais de fomento não cansam de advertir que o grande gargalo ao desenvolvimento do Brasil continua a ser o baixo nível da educação.

Um comentário:

  1. Anônimo3:23 PM

    LÍNGUA

    Há muitas línguas
    A língua do Pê
    Do Saci-Pererê
    Do Senado
    Do favelado
    Do letrado
    Do letrista
    Do lingüista

    Há línguas extintas
    Há muitas línguas
    A língua das tintas
    Da pintura
    Da Magistratura
    Da prisão
    Da mansão
    Da nobreza
    Da fraqueza
    Da regência
    Da descrença

    Há uma língua Azul
    Há muitas línguas
    A língua de Raul
    De queixas
    De Seixas
    De Camarões
    De Camões

    Há língua de “palmo”,
    De “trapo”
    De “badalo”
    De Saramago!!!

    Há línguas no museu
    Há língua de Abreu
    De formação
    De Catalão
    De Libra
    De fibra
    De Louis Braille!

    Há línguas no baile
    Há muitas línguas
    A língua indiferente do indiferente
    A língua oposta do oposto
    A língua nacional do irracional

    A língua do jornal
    Do sinal
    Do santo
    Do Esperanto
    Do Romeno
    Do tormento
    Do Chico Bento!

    A língua de Castro
    A língua do astro
    Do roqueiro
    Do grafiteiro
    Do “jeitinho brasileiro”!

    Há línguas no mundo inteiro!
    A galega
    A francesa
    A espanhola...

    Há língua portuguesa!
    Filha do Latim
    Falada por Jobim
    Em Portugal,
    Angola,
    Guiné-Bissau... Cresceu;
    E a tribo Guarani também aprendeu!

    Língua da Ilha da Madeira...
    Do Brasil!
    À brasileira!
    Do nordestino
    Do velho
    Do jovem
    Do menino
    Do mineiro...

    Português brasileiro
    Também é Português verdadeiro!

    Há línguas e línguas
    Há muitas línguas
    A língua Viperina
    A Neolatina
    A analfabética
    A poética
    A Materna
    A “eterna”...

    A língua da “guerra”,
    A língua Viva,
    E viva todas as línguas da Terra!
    A verbal
    A musical
    A gestual
    A obscena
    A da cena...

    A língua da Lei
    Da Canção
    Da Boa Razão
    Do Destino
    Dos Meios
    De Afonso Arinos...!

    Há língua nas leis do mundo inteiro!

    Com a língua se acha o respeito
    O direito
    A dignidade
    A amizade
    A razão
    A compreensão...
    O caminho da inclusão!

    Língua pra falar
    Pra amar
    Pra participar
    Pra ler
    Pra escrever...
    Pra sonhar!

    Com a língua se viaja
    Pela imagem
    Pela coragem...
    Pelos mares!

    Com a língua se descobre novos lugares
    Outras terras
    Outras Serras
    Outros saberes!

    Assim a quis
    Machado de Assis
    Com a língua Machado criava
    Os dias quentes de verão
    Os jardins da primavera
    E o beijo dos beija-flores!
    E recriava o romance dos amores!

    E no jardim da infância
    Um pouco de lembrança
    Das cores,
    Das flores...

    Há muitas línguas
    A língua que forma
    Que informa
    Que inclui
    Que exclui...

    Línguas que se destroem
    Línguas que se constroem
    Línguas no trem...

    Língua é poder
    É força
    E domina quem a tem!

    Há muitas línguas
    Há homens sem língua
    Há homens de língua
    Há, porém, homens sem vozes
    Porque lhes roubam a língua!

    Mata-se o Homem, mata-se a língua
    Mata-se a língua, mata-se o homem
    E mata-se todo o mundo!

    Muda-se o Homem, muda-se a língua;
    Muda-se o tempo, mudam-se as línguas,
    Muda-se a língua, muda-se todo o mundo!

    Há muitas línguas
    Há sempre novidades,
    Diferentes em toda e qualquer cidade;
    E do mau uso da língua
    Ficam-se as marcas na sociedade
    E do Casimiriano as saudades!

    A língua define origem
    Traça os destinos
    Ilumina na escuridão
    Quebra as correntes da escravidão
    Expande a mente
    Torna seres mais conscientes!

    Porém, com a sobrevivência na mente
    O aprendizado no chão
    E a incerteza na frente
    Sem lei nem grei:
    É a língua que encontrarei!

    No entanto, resta-me a esperança
    De um estalar de latidos da consciência
    E ainda na minh’ existência
    Poder ver
    Um belo saber
    Um belo viver
    E toda criança ser bem sucedida quando crescer!

    (Georgeana Alves)

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