Marina
O GLOBO - 13/11/09
Crônica de uma corrida maluca
Portanto, a corrida maluca vinha vindo mais ou menos assim. O mecânico Luiz Inácio da Silva confundia metalurgia com alquimia. Se nunca fora possível transformar chumbo em ouro, seria agora possível transmutar antipatia em carisma, Dilma em Lula? Menos mal que, em seus sonhos, o adversário num plebiscito PT-PSDB seria José Serra, que também mantinha relação distante com a simpatia. Seria porque diferentemente da ministra “petista”, o favorito entre os tucanos jamais poderia ser acusado de açodamento.
Disputando a disputa, persistia o fogoso governador mineiro, Aécio Neves, que, enquanto seu colega paulista não se decidia, construía um centro administrativo projetado por Oscar Niemeyer, mais três prédios belos e inumanos em Confins, local cujo nome bem exprime a distância de Belo Horizonte. Estava onde sempre esteve a brava Heloísa Helena, cujo PSOL fazia a oposição que o PT outrora fizera, mas que, temia-se, uma vez no poder se meteria na mesma situação em que o PT se metera, com alianças imobilizadoras.
Então, saíram dos boxes outros dois précandidatos que amalucaram ainda mais a corrida: Ciro Gomes, na escuderia do PSB, e Marina Silva, na do PV. Este cronista suspeita que o descomposto Ciro tenha assumido a função de Nelsinho Piquet. Jogo de equipe: bato aqui, você ganha lá na frente. Porém, ao contrário de Caetano, que em temporadas passadas já se desmanchara em elogios a Antônio Carlos Magalhães, a Mangabeira Unger e ao próprio Ciro, o cronista até hoje não chegou a nenhuma conclusão sobre a tímida Marina.
Não que discorde de sua dignidade essencial, embora vê-la na propaganda eleitoral sendo recebida por Zequinha Sarney, entre os próceres do PV, tenha doído um pouco. De resto, no mesmo programa, Marina foi firme e passou uma naturalidade pela qual Dilma daria um caminhão de obras do PAC. Ademais, num dado demográfico importante, Marina é tão mulher quanto Dilma e Heloísa, sendo mais “do PT” ao menos que a ministra. Apesar disso, dois meses depois da troca de partidos, este cronista ainda pesa prós e contras.
A seu favor, em comum com os candidatos de todos os outros partidos, menos do PT, depõe o bom hábito democrático da alternância no poder. O ex-presidente Fernando Henrique abriu a Caixa de Pandora da reeleição, sim, mas marcou um ponto ao, em recente e já célebre artigo, alertar para o surgimento do “subperonismo” lulista. Contudo, o texto era tanto ataque ao governo quanto ao próprio PSDB, incapaz de fazer qualquer oposição, inclusive pelo rabo preso no “mensalão mineiro” de seu ex-presidente Eduardo Azeredo.
(Parênteses cívicos: o ministro Joaquim Barbosa, relator dos dois mensalões no STF, dá ao cronista orgulho de ser brasileiro.) De volta a Marina Silva, o grande pró, obviamente, é sua luta pelo meio ambiente — agora clonada por todos os supostos concorrentes — e seu coerente acolhimento no PV.
Este cronista votou no verde Gabeira para a Prefeitura do Rio. Embora reconheça que Paes não faz mau governo, vislumbrava no programa derrotado uma cidade mais conforme ao século XXI. Partidos verdes, em geral, pensam mais no futuro do que seus congêneres furta-cor. No Brasil, em particular, as plataformas de quase todas as legendas preveem o passado. Há exceções no PT, no PSDB, no PSOL e no senador Cristovam Buarque, do PDT. O resto...
Chovamos na pista molhada. Essa defesa da natureza é estratégica para o Brasil se concretizar como potência mundial. Desenvolvimento sustentado e preservação de matas e fontes de água, entre outras, são questões cruciais num planeta superpopuloso e aquecido. Pueril é a discussão se a culpa pela elevação das temperaturas cabe ou não à degradação empreendida pelo homem século após século. (Acaba de surgir uma teoria para o fim da civilização pré-incaica Nazca, lá pelo ano 800 d.C.: desmatamento.) Madura é a prontidão para agir, para descobrir o que podemos fazer, e logo, de modo a atenuarlhe os efeitos.
No entender do cronista, por ora o grande contra de Marina é uma posição ambígua sobre o criacionismo. Existem contras piores no circo da Fórmula Brasil, decerto. Se ela acredita que foi Deus que criou o mundo, tal como narrado na Bíblia, está no seu direito. Tal visão é compatível com certa divinização da natureza.
Complicado é já ter declarado que não vê problemas no ensino do criacionismo ao lado do evolucionismo, apesar da ressalva de que nunca pretende defender a obrigatoriedade disso. Nas escolas religiosas, é óbvio que não há problema; mas, nas públicas, seria um retrocesso. O Estado moderno separou-se das religiões para evitar que qualquer uma queira impor sua agenda às outras.
No decorrer dos anos, este cronista tem se manifestado contra toda intromissão da religião na política — um casal de ex-governadores do Rio de Janeiro, por exemplo, tentou impingir o criacionismo ao ensino público — por acreditar numa distinção fundamental.
Não sendo “deste mundo”, a religião pode cultuar a sua verdade única. É dogmática. Sendo terrena, a política está obrigada a conviver com a diversidade. É pragmática. O que não significa que Jesus tenha que se aliar a Judas e ainda sair por aí se gabando.
E assim, mui brasileiramente, Marina saiu dos boxes com pneus para o avanço e pneus para o atraso. Cada corrida maluca tem a Penélope Charmosa que merece.
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