O GLOBO - 07/02
A sociedade corre sérios riscos quando permite o surgimento de grupos de aparentes bons propósitos, mas que atuam à margem da lei e do Estado
A imagem do adolescente negro, nu, preso pelo pescoço ao poste por uma trava de bicicleta lembra gravuras da época da escravidão. A cena, porém, deriva de outra mazela social, a da ação de “justiceiros” que, nos últimos dias, segundo o noticiário, têm agido no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio, supostamente para, ao espancar jovens delinquentes — caso do menino de 15 anos atado ao poste —, proteger a sociedade dos criminosos.
A foto correu redes sociais, surgiram novos casos da ação do mesmo grupo de “vingadores” ou outros, e se estabeleceu o confronto entre defensores e críticos das ações punitivas à margem da lei e do Estado. Tão preocupante quanto o fato em si é constatar a existência de algum apoio à “justiça com as próprias mãos”.
Ingenuidade, no mínimo. Não faltam evidências, inclusive na História, de que toda vez que grupos se formam à margem da lei e do Estado, por melhores que sejam os propósitos, a sociedade dá um passo rumo à barbárie e nasce uma serpente no ninho da tirania.
Surgem dessa deformação milícias, esquadrões da morte, pistoleiros de aluguel e similares. Na longa guerra civil colombiana, o país padeceu — e continuará a padecer, se as atuais negociações de paz não chegarem a bom termo — devido às Farc, de um lado, e, de outro, aos grupos de "autodefesa", tão violentos e criminosos quanto os guerrilheiros.
Até na época posterior à das Cruzadas, a Igreja teve de conter ordens religiosas militarizadas criadas para proteger os cristãos nos avanços sobre Jerusalém, mas que depois se tornaram perigosas forças autônomas.
A questão dos “justiceiros”, hoje, no Brasil, se torna grave também por ser de fácil manipulação ideológica: por grupos racialistas, supremacistas e por aqueles que enxergam tudo pelo viés da luta de classe. Já houve pelo menos um bate-boca no Congresso, sobre o que aconteceu no bairro do Flamengo, por meio deste viés equivocado, simplificador. Nada justifica a ação desses grupos, mesmo que o Estado brasileiro, no sentido amplo, se mostre ineficiente na proteção à sociedade. Seja porque polícias esbanjam incompetência, e, em alguns casos, têm contingentes pequenos diante das necessidades de segurança pública. Seja porque a Justiça é lenta, e o próprio arcabouço legal, inadequado para enfrentar a criminalidade entre os jovens. O exemplo já clássico é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), blindagem de proteção dos menores de 18 anos de idade, mas que funciona como aval de impunidade para adolescentes criminosos. Distorção usada há tempos por quadrilhas, ao escalar "di menores" para crimes violentos.
A resposta a ser dada à deformação do "justiceiro", além de sua repressão e punição pelos meios legais, também é tratar de aprimorar polícias, bem como rever-se métodos e sistemas legais desatualizados diante do avanço e mudanças da criminalidade nas últimas décadas.
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