O GLOBO - 09/12
O debate sobre o tema esquentou por causa do aplicativo Lulu; o problema é quando a discussão desemboca para o revanchismo
Não vejo problema nenhum em objetificar os outros sexualmente, independente de gênero e identidade sexual. Aprovo e incentivo. Se admitimos que o desejo é uma emoção complexa que envolve pulsões irracionais, o tratamento de outro ser humano como um objeto no contexto sexual precisa ser visto com naturalidade.
Em texto publicado no “New York Times”, o psicólogo e cientista cognitivo Paul Bloom comentou estudos, baseados na observação de imagens eróticas e na administração de choques elétricos, que confirmam a “natureza corporal de muitos de nossos sentimentos morais”. Os resultados mostraram que é mais difícil ver pessoas nuas como agentes livres. Por outro lado, elas também nos parecem mais capazes de ter experiências emocionais, o que é essencial para a prática da empatia e da compaixão. O que os estudos não mostram, ressalta Bloom, é até que ponto essas reações negativas e positivas afetam nossos relacionamentos complexos e de longa duração com outros seres humanos.
É certo que a objetificação pode acarretar tendências de comportamento malignas, e não por acaso essa é uma pauta constante do feminismo. Historicamente, o impulso de objetificação sexual embutido no desejo dos homens pelas mulheres se resolve, não raro, em condutas desrespeitosas e degradantes, com ampla aceitação social. Reivindicar um tratamento mais respeitoso, nos âmbitos público e privado, é justo e necessário. O problema é quando a causa desemboca no revanchismo — apoiado numa noção equivocada de reparação histórica — e na vitimização, postura essa que combina a denúncia de opressão em todo e qualquer comportamento masculino com uma diminuição autoinfligida da agência e do poder da mulher sobre seu corpo, seus atos e seus pensamentos, como se um olhar lascivo na rua pudesse de fato aniquilar a consciência e a liberdade de uma pessoa, reduzindo-a a um pedaço de carne “público” ou da propriedade de um babaca qualquer.
O debate a respeito da objetificação sexual esquentou nas últimas semanas por causa do sucesso do Lulu, aplicativo de Facebook usados por mulheres para compartilhar avaliações de parceiros sexuais. O anúncio do Tubby, versão masculina do Lulu, causou barulho com suas hashtags vulgares e chegou a ser proibido com base na Lei Maria da Penha, mas na última sexta revelou-se que o aplicativo era uma pegadinha.
Na “Folha de S. Paulo”, Talyta Carvalho publicou um artigo chamado “Lulus ofendidas”, na qual critica a reação da parcela mais exaltada de defensoras do Lulu contra os homens que se sentiram ofendidos pelo aplicativo. Ela aponta o perigo da visão da “falsa simetria”, segundo a qual é impossível comparar homens e mulheres por causa da “dívida histórica”, e conclama as mulheres a transcenderem a lógica revanchista. Acho que Talyta exagera ao zombar do desejo de privacidade que algumas pessoas ainda procuram em tempos digitais. É ingênuo, sim, clamar por privacidade quando se tem um perfil de Facebook recheado em tempo real com nossa intimidade, mas é válido protestar contra práticas abusivas nas redes sociais ou abdicar delas completamente por não concordar com a palhaçada. Ela também pesa a mão ao equacionar “décadas de feminismo” com políticas de ressentimento, o que é injusto com as muitas conquistas importantes do feminismo e com as mulheres não ressentidas. Mas acerta ao lembrar que o sexismo trafega nos dois sentidos e ao minimizar o drama todo da objetificação, afinal “tudo é objeto”.
A objetificação sexual é humana. É ingrediente nobre da dinâmica do desejo. O verdadeiro problema com o Lulu é que ele desumaniza a objetificação ao enquadrá-la em modelos informáticos e mercadológicos que mascaram a realidade suja, ambígua e diversificada das relações sensuais e afetivas. É saudável imaginar sexo com o corpo de uma pessoa atraente passando pela rua em trajes sumários, ignorando a existência de sua liberdade, sonhos e pensamentos, assim como coisificar alguém estrategicamente entre quatro paredes ou compartilhar, em privado, histórias sexuais com amigos. Reduzir tudo isso a formulários e tags de um aplicativo que vampiriza perfis em redes sociais com fins de monetização, bom, aí começa a ficar meio triste.
Em “O erotismo”, Georges Bataille salienta que a transgressão de tabus é essencial ao desejo. Dentro do convívio social, a transgressão é prevista, às vezes permitida ou mesmo incentivada. “Podemos chegar ao ponto de fazer uma proposição absurda: o tabu existe precisamente para ser violado”, diz. No ambiente pós-feminista, transgredir o respeito à individualidade e à autonomia de mulheres e homens exige tato e responsabilidade, e com isso a objetificação sexual ganha posição um pouco diferente em nossa cartela de tabus. Mas é hipocrisia pensar que ela deve cair fora. Ninguém engana o desejo.
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