segunda-feira, dezembro 09, 2013

Espelho nacional - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 09/12

O ministro está fazendo o que o país vem fazendo há cem anos, sem ir à raiz do problema e sem que ele seja equacionado em bases estruturais



Na hora de voltar para casa, sempre escuto a “Hora do Brasil”. O programa é uma verdadeira aula da Nação e seu título espelha a forma como o país pensa. Com certa imaginação, vou criar alguns exemplos da programação (as notícias e os nomes são fictícios): “Poder Executivo. O ministro João da Silva assinou hoje o convênio com o estado X para transferência de recursos ligados ao esforço de combate à seca. Na ocasião, o ministro ressaltou que o convênio indica o compromisso do governo federal com a solução definitiva do problema que há tantas décadas assola o sertão. Passamos agora para o noticiário sobre o Poder Legislativo, começando pela Câmara dos Deputados. O deputado Pedro Dantas discursou hoje em defesa de um aumento de 10% para os aposentados e pensionistas que ganham acima do salário mínimo. O deputado salientou que o fato de os aposentados que recebem mais de um salário mínimo terem tido ao longo dos últimos anos reajustes inferiores ao daqueles que ganham o mínimo cria dois tipos de aposentadorias, estabelecendo uma discriminação que o deputado qualificou como ‘injustificada e odiosa’. Ele foi apartado pelo líder do governo na Câmara dos Deputados, que disse se sentir sensibilizado com a proposta e que iria se encarregar de levar a reivindicação à Presidência da República. Vamos agora para o Senado Federal. O senador Romualdo Antunes defendeu seu projeto que muda os contratos de renegociação da dívida das entidades subnacionais com o governo federal, passando a adotar a partir de agora uma taxa nominal de juros de 4% e eliminando qualquer indexação. O senador alegou que os juros são muito elevados e que as finanças estaduais encontram-se estranguladas, razão pela qual é essencial para o equilíbrio da Federação que os juros pagos pelos estados sejam iguais ao que ele entende que poderia ser considerada uma taxa de inflação de longo prazo e sem qualquer acréscimo adicional.”

Os exemplos são inventados, mas representam aproximadamente o que milhões de brasileiros ouvem todos os dias. Quando escuto tais bondades, lembro das palavras de FHC, expressas com “chapéu” de sociólogo, ao preparar Armínio Fraga para a sabatina no Senado e reproduzidas no seu livro “A arte da política” (Civilização Brasileira, página 428): “Não se esqueça do seguinte: o Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas não gostam do capitalismo, os jornalistas não gostam do capitalismo, os universitários não gostam do capitalismo... O ideal, o pressuposto, que está por trás das cabeças, é um regime não capitalista e isolado, com Estado forte e bem-estar social amplo.”

Nos exemplos acima, num caso o ministro está fazendo o que o país vem fazendo há cem anos, sem ir à raiz do problema e sem que ele seja equacionado em bases estruturais; o deputado fica bem com milhões de pessoas, sem se dar ao trabalho de definir de onde sairiam os recursos; e o senador faz um agrado às suas bases estaduais, propondo um disparate, mesmo que isso dinamite as finanças da União.

A “Hora do Brasil” é um relato de utopias. Ela espelha a alma nacional, onde os planos mirabolantes e a retórica das promessas ultrapassam o esforço em dimensionar o que se pode fazer, com o melhor retorno possível, dada certa restrição de recursos. Diz-se que Jean Daniel, diretor de “Le Nouvel Observateur”, teria dito: “Prefiro me enganar com Jean-Paul-Sartre a ter razão com Raymond Aron” (ambos protagonistas de intensas controvérsias ideológicas nos anos da Guerra Fria). Na cultura nacional onde, no terreno da retórica, tudo é possível, a grande maioria de nossos políticos prefere “se enganar com Sartre ao invés de ter razão com Aron”, ou seja, prometer coisas que não fazem o menor sentido, para não correr o risco de incorrer em um raciocínio que possa ser qualificado de “neoliberal”, “tecnocrático” ou “ortodoxo”. Um antigo diplomata dizia que “políticos preferem lidar com sonhos e não com a realidade, porque esta necessariamente impõe limites, enquanto nos sonhos tudo é possível”. O Brasil terá feito um avanço cultural no dia em que a “Hora do Brasil” deixar de ser o que sempre foi e levar o ouvinte a entender a dificuldade de fazer escolhas entre políticas, em vez de se limitar a ser um enunciado de ideais

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