O Estado de S.Paulo - 01/11
Bem ao gosto do peronismo, sua vertente kirchnerista atravessa um momento no qual oscila drasticamente entre a derrota humilhante e a vitória épica. Atropelado nas urnas na última eleição parlamentar, e com a presidente Cristina Kirchner numa cama de hospital e sem chance de buscar uma nova reeleição, o kirchnerismo passou a ter os dias contados. Mas eis que a Corte Suprema argentina lhe ofereceu ainda um sopro de vida, ao lhe dar razão numa causa crucial contra o principal inimigo do governo - o jornalismo independente.
Após quatro anos de disputas judiciais, os magistrados consideraram constitucional a chamada Lei de Mídia - que, segundo o governo de Cristina, visa a "democratizar" a comunicação social. Na verdade, a lei, embora não especifique nenhum caso em especial, está voltada basicamente para destruir o Grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia da Argentina e que se tornou a grande - e talvez a única - tribuna da oposição no país.
Na letra fria, a Lei de Mídia parte de um princípio correto: visa a reduzir a concentração de diversos veículos nas mãos de uma única organização. Segundo o texto, uma empresa de comunicação poderá acumular até 24 licenças de rádio e TV, e sua cobertura não poderá exceder a 35% da população das cidades em que opera. O Grupo Clarín tem mais de 250 licenças de rádio e TV, e sua cobertura de rádio chega a mais de 40% da população, enquanto a de TV aberta atinge 38% e a de TV a cabo, 58%.
A organização terá agora de se desfazer das licenças excedentes, num prazo que será estabelecido pelo governo - que também decidirá quais licenças serão levadas a leilão. É provável que sejam arrematadas por empresas alinhadas ao kirchnerismo e que dependem de verba oficial para viver.
O pretexto de desconcentrar a mídia, portanto, é apenas uma desculpa esfarrapada, pois a intenção do kirchnerismo nunca foi "democratizar" a mídia. Ao contrário: o que ele persegue é o pensamento único, algo que só se conquista quando se controla a informação e se elimina a dissidência.
A Lei de Mídia aplica-se ao Clarín, mas não ao próprio governo e a seus associados, que concentram mais de 80% de toda a mídia audiovisual da Argentina. Cinco dos seis canais nacionais de notícias são kirchneristas. Trata-se de hegemonia midiática, alimentada por dinheiro público: Cristina despejou nada menos que 41% das verbas de publicidade oficial nos principais grupos de mídia simpáticos ao governo.
Em sua decisão sobre a Lei de Mídia, a própria Corte Suprema chamou a atenção para o fato de que haverá prejuízo à liberdade de expressão se os veículos de comunicação, graças ao massivo subsídio estatal, se converterem em "meros instrumentos de apoio a uma corrente política determinada".
A Lei de Mídia estabelece também que um mesmo grupo não pode ter canais de TV aberta e de TV a cabo ao mesmo tempo, como é o caso do Clarín. No entanto, este é também o caso de grupos como Veintitrés, Uno Medios, Telefé, Página 12 e Albavisión, todos governistas. Apenas o Clarín será atingido pela norma.
Outro ponto da Lei de Mídia que não se aplica aos amigos de Cristina é o que veta a grupos estrangeiros a propriedade de meios de comunicação. A Telefé, por exemplo, é bancada pela Telefónica, da Espanha. O Canal Nueve pertence a um empresário mexicano. Nos dois casos, o noticiário é só elogios ao governo.
Esses são apenas alguns dos tantos exemplos da farsa criada pelos Kirchners para travestir de legalidade um ato de afronta explícita à democracia. O pecado do Clarín foi ter decidido criticar o governo em razão de um confronto com ruralistas, em 2008. A partir de então, o casal presidencial, Néstor e Cristina, travou uma luta sem quartel contra o grupo.
A guerra incluiu a tentativa de apropriar-se da fornecedora de papel do Clarín e até mesmo a abertura de um processo contra os diretores do jornal por suposta cumplicidade do periódico com a ditadura.
Caso se queira saber até onde pode chegar a ideia de "controle social da mídia", defendida pelo PT, o caso argentino é certamente um bom exemplo.
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