O Estado de S.Paulo - 01/11
Imaginem um livro que não é um livro, mas uma caixa. Dentro dela há algumas centenas de páginas soltas e só a primeira e a última estão claramente demarcadas. Tudo o que deve vir entre uma e outra depende do leitor, que pode organizá-las e reorganizá-las reconstruindo a narrativa como bem entender. Essa foi a proposta do autor britânico B. S. Johnson em seu seminal The Unfortunates, publicado em 1969. Além de exemplo de literatura experimental, o livro-que-não-é-livro faz parte da tradição avant-garde inaugurada por James Joyce e Samuel Beckett: a narrativa não linear, permeada de idas e voltas no tempo, de fluxos de consciência das personagens e de uso disseminado da livre associação.
Embora a literatura seja uma representação da experiência real, nem sempre o que funciona bem na literatura subsiste na economia. Desde a crise financeira de 2008, os líderes globais e os gestores de política econômica tentam arrumar e rearrumar incessantemente as páginas da trama global, sem chegar a uma narrativa que faça sentido, que contenha alguma harmonia ou qualquer senso de finalização. Aqui, no Brasil, enredamos pela economia experimental motivados por ímpetos inequivocamente oportunistas, mas, como o resto do mundo, ainda não fomos capazes de construir algo que tenha nexo.
Alguns casos são exemplares, como o leilão de apenas um participante que garantiu ao Tesouro os R$ 15 bilhões de que necessitava para cumprir as metas fiscais deste ano, desde que a debilitada Petrobrás contribua com a parte que lhe cabe desse latifúndio. Há ainda as desonerações de setores seletos da economia que trocaram a contribuição patronal sobre a folha de pagamentos por uma alíquota sobre o faturamento. São desonerações que oneram, pois tendem a pressionar o mercado de trabalho, os salários e a inflação, ao mesmo tempo que reduzem o incentivo das empresas para investir em formação de capital. Ou seja, encorajam a substituição de capital por mão de obra. Seria uma medida controvertidamente oportuna, se o País não estivesse precisando de investimentos e se a taxa de desemprego tivesse de ser reduzida. E o que dizer da política fiscal expansionista que convergirá lentamente ("asseguro-lhes!", brada o Banco Central) para a elusiva "zona de neutralidade"? Um aviso aos incautos: a "zona de neutralidade" no caso do Brasil é algo além da imaginação, um verdadeiro "twilight zone". Afinal, com a recente alteração no indexador das dívidas estaduais e municipais que retroage aos anos 90, e a gastança adicional que ela permitirá, não há neutralidade que resista a poucos segundos de reflexão.
Temos, portanto, páginas e mais páginas sem sentido, sempre realçadas pelo uso particular de figuras de linguagem pelo governo brasileiro. A antítese: combateremos a inflação inflando o crédito público. O pleonasmo: nós incluímos e, nesses últimos dez anos, fomentamos a inclusão social. E a favorita nesses tempos de campanha eleitoral, a hipérbole: o que interessa é o PIB do povo, a taxa de desemprego mais baixa da história, o maior aumento da renda das famílias brasileiras das últimas décadas, o maior crescimento do PIB do mundo no 2.º trimestre de 2013.
Nosso grande infortúnio é que os líderes mundiais estão plenamente engajados em reescrever a governança global de forma desgovernada. Como querer fazer sentido da política econômica brasileira se o sistema político da maior economia do mundo está à deriva? Como querer reinstaurar a racionalidade econômica se nos principais países do mundo prevalece o interstício aparentemente intransponível entre o que é bom para o curto prazo e o que faz sentido no longo prazo? Eis o principal dilema, não para os integrantes do atual governo brasileiro, mas para os que aspiram à liderança do País a partir de 2014.
Desafortunados são todos aqueles que veem na economia experimental a crônica de um desastre anunciado, sem que tenham qualquer possibilidade de pôr as páginas de volta na caixa para enterrá-la de vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário