O Estado de S.Paulo - 30/11
Tão ou até mais triste que um país que precisa de heróis é uma criança que nunca idolatrou um herói do futebol.
Em geral, os heróis da criançada ou se destacam no ataque, fazendo muitos gols, ou debaixo das traves, defendendo-as com destreza, arrojo e alguma ostentação. Meu primeiro (e único) ídolo não era, estranhamente, nem atacante nem goleiro. Vi jogar Pelé, Garrincha, Zizinho, Didi, mas acontece que Nilton Santos foi meu primeiro coup de foudre futebolístico e jamais deixei de lhe ser tão fiel quanto ele foi ao Botafogo, seu único clube ao longo da carreira, que durou 16 anos (1948-1964), e da vida, que durou 88 e chegou ao fim na última quarta-feira.
Se eu fosse um pouquinho mais velho, dificilmente teria escapado aos sortilégios do temperamental e galante artilheiro Heleno de Freitas, mas quando despertei para o futebol, Silvio Pirilo já ocupara seu lugar no ataque alvinegro. Restou-me Nilton Santos. Ou melhor, o garbo, a elegância e a mestria de Nilton Santos, com sua marcação precisa e leal, seu raciocínio rápido, sua perfeita noção de passe e cobertura, seus dribles desconcertantes dentro e fora da área, seus vistosos e audaciosos avanços ao ataque. Os dois, aliás, só atuaram juntos quatro vezes, em maio de 1948.
Nilton, naquela época, era apenas Santos. Havia outro Nilton no time e o jeito foi distingui-lo pelo sobrenome, só reincorporado ao prenome quando o convocaram para a seleção brasileira, pois nela havia outro Santos, Djalma.
Santos ainda estava sem o Nilton ao ser biografado pela revista Vida do Crack, em setembro de 1953. Custava cinco cruzeiros o exemplar, eu queria dois (um para guardar, outro para recortar e fazer um álbum), minha mãe disse não (alegando já ter estourado minha mesada com gibis e ingressos de cinema), minha avó me salvou. Ao ouvir que eu queria comprar "a vida do Santos", vovó persignou-se, e, acompanhadas de um conselho ("Isto mesmo, meu filho, é melhor você ler sobre a vida dos santos do que histórias em quadrinhos"), depositou na minha mão duas notas de cinco, o dobro do que eu mendigara.
O álbum há muito sumiu, mas o segundo exemplar da Vida do Crack permanece comigo até hoje, em perfeito estado de conservação, guardado a não sei quantas chaves como se fosse a Bíblia de Mongúncia. Depois então que o biografado craque o autografou, na primeira Feijoada do Fogão, dez anos atrás, seu valor tornou-se rigorosamente inestimável. "Se eu fosse você, não o trocaria nem por um desenho original do Michelangelo", aconselhou-me a sério o arquibotafoguense João Moreira Salles. E ele nem viu Nilton Santos jogar ao vivo.
Atacante nas peladas adolescentes, só virou defensor por teimosia do então presidente do Botafogo, Carlito Rocha, que ao vê-lo no primeiro teste em General Severiano, perguntou: "Rapaz, você joga com a cabeça?". Crente que jogar com a cabeça significava jogar de forma inteligente, Nilton respondeu afirmativamente. "Salte", ordenou Carlito. Nilton saltou. "Esqueça o ataque, rapaz", disse o cartola. E profetizou: "Na defesa, você será campeão carioca, brasileiro e sul-americano". Em menos de dois anos a profecia se cumpriu.
Nilton foi campeão carioca (quatro vezes), brasileiro, sul-americano (o primeiro título internacional de nossa seleção, no Pan-Americano do Chile, em 1952), venceu um Rio-São Paulo e duas Copas do Mundo. No total, 26 títulos. Jamais perdeu uma final de campeonato. Vale lembrar que na infausta Copa de 1950, a primeira das quatro para as quais foi convocado, era reserva de Augusto, zagueiro do Vasco. Foi o único jogador a participar da fantástica evolução que se deu no futebol brasileiro entre 1950 e a Copa de 1962.
Conhecia tudo de bola. Dava-se ao luxo de driblar de costas o adversário porque sabia, pela sombra projetada no gramado, onde estava seu pé de apoio, saindo sempre pelo lado certo. Não ganhou gratuitamente o apelido de "Enciclopédia do Futebol", que o locutor esportivo Valdir Amaral tirou do colete durante a transmissão de uma partida memorável do Botafogo - e sobretudo do seu lateral esquerdo. Foi nessa posição que se consagrou como o primeiro ala moderno, de resto revelado ao mundo na tarde de 8 de junho de 1958, no estádio de Udevala, na Suécia, quando desrespeitou as ordens do treinador Vicente Feola, abandonou nosso setor defensivo, avançou célere com a bola pela esquerda, tabelou com o centroavante Mazzola, e marcou o segundo gol do Brasil.
Bem antes de ser eleito pela Fifa o melhor da posição em todos os tempos, já era um deus dos estádios de todo o continente. Conta-se que, no intervalo de um jogo do Botafogo contra o River Plate, na Cidade do México, o argentino Nestor Rossi aconselhou seu companheiro de equipe Federico Vairo, esbodegado de tanto levar dribles de Garrincha, a passar a mão nas pernas de Nilton: "Vá lá, passe a mão nas pernas dele, que seu jogo logo melhora. Anda, que o futebol de todos os beques do mundo está ali, naquelas pernas". Se deu certo a mandinga, não sei.
Com a idade, o fôlego mais curto, Nilton virou zagueiro, sem perder a classe nem a competência. Depois de aposentado, passou a dar show nas peladas do clube Trinta por Trinta, na zona sul do Rio, ao lado de jornalistas, artistas e outros aposentados. Ensinou ao também peladeiro Armando Nogueira a gastar por igual as laterais de sua Conga, no cimento do vestiário, para que os jogadores do time visitante não descobrissem de cara se ele era destro ou canhoto. Um sábio.
Armando o endeusava. "Não era um jogador de futebol, era uma exclamação", escreveu numa crônica. Consumido de saudades botafoguenses, encaixou nela este breve poema sobre o craque: "Tu em campo parecias tantos. E, no entanto - que encanto - eras um só Nilton Santos."
Creio ter sido Armando o autor do texto gravado, à guisa de dedicatória, naquela bola com que o jogador foi presenteado pelos amigos em 1983: "Mestre Nilton, hoje estou realizando o sonho de felicidade de todas as bolas do mundo: ser só sua para sempre".
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