O Estado de S.Paulo - 18/10
Em julho de 1998, quando a seleção brasileira de futebol perdeu a oportunidade de ser pentacampeã mundial - após o episódio em que o jogador Ronaldo Fenômeno (na época chamado de Ronaldinho) entrou em campo contra a França (e nada fez) após sofrer uma convulsão, perder os sentidos, ser levado a hospital e de nada se lembrar horas depois -, o autor destas linhas escreveu um artigo indignado, neste mesmo espaço, sob o título Futebol, ética e informação. Nele se mostrava inconformado com a falta de reação, no episódio, de dirigentes esportivos, técnicos, médicos, profissionais e empresários de futebol e outros, diante do desrespeito a todas as dezenas de milhões de torcedores, assim como da população em geral, que tinham o direito de ser informadas de tudo o que acontecera - e quem foram os responsáveis pela escalação do jogador sem nenhuma condição de saúde e emocional.
"Ele parecia estar morrendo" na hora da convulsão, testemunhou Edmundo, companheiro de Ronaldo, no programa de Jô Soares. Mas ainda assim foi escalado. Chegou-se a falar em envenenamento, subornos, bruxarias, imposições comerciais de empresas patrocinadoras da seleção, e por aí afora. Mas nenhuma entidade representativa dos setores envolvidos se manifestou. Nem o Congresso Nacional fez nada para apurar o que acontecera e dar satisfações à Nação.
Passados 15 anos, com novas conformações, o episódio se repete, nas declarações do técnico da seleção, Luiz Felipe Scolari, inconformado com o direito de duas empresas - da Arábia Saudita e da Inglaterra - escolherem os adversários (Coreia do Sul e Zâmbia), datas e locais (Seul e Pequim) para jogos amistosos do Brasil. Segundo Felipão, isso prejudica a já difícil preparação do selecionado para a Copa do Mundo. E de novo fica tudo por isso mesmo.
Isso acontece numa hora já de crise para o futebol por aqui, com vários dos maiores e mais tradicionais clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro, principalmente, mergulhados em crise profunda, rebaixados de divisão alguns, ameaçados outros. E sempre em meio a negociações, que envolvem cifras gigantescas, de venda e compra de jogadores. O noticiário fala em mais de mil jogadores que hoje atuam nos melhores clubes da Europa, da Ásia, do Oriente Médio, dos Estados Unidos - enquanto por aqui se tem de conviver com o que sobra. Com jogadores revoltados a cada transação que paga mais aos seus novos companheiros de clube - e "fazendo corpo de mole" sem a equiparação.
Não espanta mais ninguém saber que empresários têm agentes que buscam no País todo novos jogadores - para isso cercam e levam para os clubes meninos de 12 anos em diante. Podem até ser índios, como o autor destas linhas testemunhou há pouco tempo, procurado por um índio do Xingu: um empresário queria levar para um grande clube de Goiânia seu filho, então com 16 anos de idade, mas oferecia um contrato pelo qual o jovem abriria mão de parte da ajuda de custo que o clube lhe daria para moradia e alimentação. Bem como abriria mão de praticamente todos os direitos na hipótese de seu "passe" ser negociado com outro clube - o dinheiro seria dividido pelo empresário com o clube. Com a ajuda de um dirigente do clube, o contrato foi reformulado.
Em 1998 já se perguntava aqui, e pode-se repetir agora, após as declarações de Felipão: onde estão as instituições que representam jogadores e não se manifestam em episódios como esses? Onde está o ministério que regula as questões do esporte e nada diz nem faz? Onde ficam instituições que representam técnicos de futebol? Que deveriam fazer as instituições de profissionais da comunicação, que têm o dever de zelar pelo direito da sociedade à informação? Por que não atua o Ministério Público - que tem a obrigação legal de proteger, por meio de inquérito civil e ação pública, os chamados interesses difusos e coletivos (a emoção da sociedade, no caso), amparados pelo artigo 129, inciso IV, da Constituição, que está completando um quarto de século?
No final da década de 1980, a extraordinária Fernanda Montenegro perguntou, ao ver 1 milhão de pessoas chorando e correndo atrás do esquife do presidente eleito, e não empossado, Tancredo Neves: "Isso não é a cultura de um povo? Um milhão de pessoas, em absoluta ordem, sem nenhum comando, correndo nas ruas de São Paulo atrás de um caixão, para manifestar sua perda e sua dor? Não é isso a cultura de um povo?".
A paixão nacional pelo futebol é parte dessa cultura, move setores imensos da sociedade todos os dias, leva-os a buscar informações nos meios de comunicação, a ir (cada vez menos, diante dos problemas atuais) aos estádios, a dar nome de jogadores a seus filhos, a discutir nos bares, etc., etc. Então, é preciso proteger essa paixão.
Não faz o menor sentido que o calendário, os locais de jogos e os adversários da representante maior dessa paixão - a seleção brasileira - sejam comandados em segredo apenas por empresários, à revelia do próprio técnico, dos jogadores, dos torcedores. Futebol não é apenas um negócio. E mesmo que seja um negócio, precisa estar conformado e regulado pelos direitos da sociedade.
Não seria estranho, assim, ver daqui a pouco, nas ruas, também o chamado "esporte bretão" ser objeto de protestos populares (além do custo dos estádios) - embora isso não assegure que algo vá mudar. Porque não está atado a projetos políticos, que levem ao campo institucional interesses específicos. E porque as próprias instituições parecem imobilizadas ou ineficazes - basta ver tudo o que alinhou como conquistas da Câmara dos Deputados o seu presidente, em pronunciamento em rede de televisão; e tudo o que arrolou continua a parecer distante.
Sendo assim, vamos ver se pelo menos o grito de Felipão pode mover as instituições, que já deveriam estar protegendo as grandes emoções nacionais.
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