O Estado de S.Paulo - 16/09
Você nota quando chega ao aeroporto. Pisa firme na cidade que considera sua, mas logo começa a tropeçar em detalhes que traem a distância. Sua expectativa de empurrar a bagagem para a saída sem ser bloqueada por parentes de passageiros e taxistas suspeitos, oferecendo um desconto no trajeto para a zona sul do Rio via Niterói é recebida com incredulidade. Quem ela pensa que é? Quer ir do ponto A ao ponto B sem passar por N obstáculos?
Quando me mudei para Nova York tentei aplicar minha malandragem carioca à temida malandragem dos motoristas de táxi locais. Naquela época, você não precisava ter conhecimentos de urdu, hindi ou bengali para se comunicar com eles. Ia cobrir um evento no Norte de Manhattan, bem acima da área que considerava território familiar e, para evitar ser enganada no trajeto, disse ao afro-americano: o senhor vai subindo a Broadway. Percebendo a ignorância da passageira, o motorista reagiu com um suingue digno da Ella Fitzgerald: "Madame, pela Broadway nós podemos ir até o Canadá". Afundei no assento lembrando o ditado que vale para as duas cidades: Malandro demais se atrapalha.
Você nota quando reencontra os parentes. Detecta um olhar divertido de quem está contabilizando mentalmente o que a distância operou na sua aparência, no seu ritmo e, ó indignidade, no sotaque. Às vezes, ouve explicações detalhadas sobre uma tendência ou comportamento e começa a desconfiar que lhe veem de roupa de safári, não da coleção do Michael Kors para 2014, mas da coleção usada pelo Dr. Livingstone na Tanzânia, no final do século 19.
Numa primeira visita que fiz a Lisboa, o romancista português Mario de Carvalho me encontrou para uma entrevista no café A Brasileira e me lembrou que colonizados como nós e os indianos falam uma versão arcaica da língua do colonizador. A independência faz com que a linguagem coloquial congele no tempo expressões herdadas. Os portugueses, ele me explicou pacientemente, nem se lembram mais de uma frase como "você vai ver com quantos paus se faz uma canoa".
Ele descreveu, em parte, o que faz o exílio voluntário. Minha independência para recomeçar em outra cultura congelou mais do que expressões idiomáticas. E não adianta viver online para ter a ilusão da presença. Quando o motorista de táxi assiste ao jogo do Botafogo na tela do GPS enquanto dobra a Curva do Calombo na Lagoa como se fosse o Massa tentando se qualificar numa prova, você pergunta, isso agora pode? Mas é a pergunta errada, claro.
Quando parti daqui, um presidente do tribunal máximo do País não sonharia em ser grosso com a presidente da República na frente do papa. E não seria aplaudido na mídia social pela quebra de decoro. Afinal, ao contrário dos bebês atirados pela janela no cortejo pelo centro do Rio, o magistrado só chegou perto do papa pelo cargo público que ocupa. E, não importa em quem ele votou, a instituição da presidência tem precedência sobre a picuinha pessoal. Ou não tem mais?
Faço o possível para não chamar atenção além da evidente falta de bronzeado. Mas cabeças se viraram para a minha mesa num café do Jardim Botânico, quando pedi ao garçom: Pode colocar duas doses de expresso no meu cappuccino? "Isto não existe", ele respondeu, com evidente paternalismo no tom. Insisti e ele levou o pedido ao balcão como se tivesse acabado de encontrar um homenzinho verde com antenas na cabeça.
Passei o fim de semana estudando embargos infringentes, uma noção obscura demais para uma anglófila simplória. Não é à toa que essa figura do Direito nasceu, dizem, da desordem judiciária da monarquia portuguesa. Procurei uma tradução para o inglês, mas o sistema legal norte-americano é igualitário demais para acomodar a noção. Quem sabe se, com a nossa crescente influência continental, vão importar a aberração judiciária e começar a blindar compadres do Obama.
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