O Estado de S.Paulo - 18/09
Se tiver êxito, a iniciativa da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados de enviar uma delegação à Rússia para ouvir Edward Snowden sobre as atividades de espionagem da National Security Agency (NSA) no Brasil, aprovada por unanimidade na semana passada, colocará o Legislativo brasileiro no centro de um pesadíssimo jogo nas relações internacionais. Ter os representantes do povo diretamente envolvidos nesse jogo é inevitável e até desejável, na medida em que o País avançar na realização de sua secular ambição de ocupar o espaço que lhe cabe entre os grandes. A recente participação de parlamentares em questões complicadas com a Bolívia aponta nessa direção. No caso em questão, porém, aconselha-se aos congressistas entrar em campo com os olhos bem abertos e sem ilusões.
Devem presumir, em primeiro lugar, que seu desejo de avistar-se com Snowden é bem visto pelos serviços de inteligência dos EUA, pois, se atendido, dará a eles uma oportunidade única para tentar saber o paradeiro do jovem ex-empregado da Booz Allen e armar uma operação para trazê-lo de volta aos EUA. Com isso em mente, os parlamentares não devem descartar a possibilidade de se tornarem atores involuntários de cenas dignas dos thrillers de espionagem - antes, durante e depois do encontro na Rússia. Os membros da comitiva parlamentar precisam ser realistas, também, quanto aos entendimentos que terão de entabular com os diplomatas de Moscou para agendar o encontro com Snowden.
Os russos, como se sabe, estão habituados a espionar e ser espionados. Devem, por isso, estar curiosos com a perplexidade dos parlamentares ante a bisbilhotagem da NSA no Brasil. País com tradição de grampo e vazamento seletivo de informações sigilosas de seus próprios cidadãos, o Brasil é a única nação de seu tamanho e status que não dispõe de um serviço sofisticado de contraespionagem ou de coleta e interpretação de informações sigilosas fora de suas fronteiras. A atitude nacional no assunto é tão relaxada que, como admitiu o próprio ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, informações sigilosas são trocadas entre funcionários do governo não em redes intranet seguras, mas via Gmail e outros provedores de internet vulneráveis não só aos serviços de espionagem de países que levam o assunto a sério, mas a qualquer hacker de fundo de quintal.
É também estranha para os russos a controvérsia que as atividades da NSA expostas por Snowden causa nos próprios EUA, incluindo as revelações de que a agência espiona líderes e empresas de países amigos como Alemanha, França, México e Brasil sob a justificativa, obviamente fajuta no caso, de proteger o país contra o terrorismo. A imprensa americana tem publicado reportagens e análises copiosas sobre atividades de espionagem da NSA nos EUA, destacando os atentados ao direito dos cidadãos à privacidade e violações de leis adotadas após o 11 de Setembro para compatibilizar as ações do crescente aparato de segurança do país ante a ameaça terrorista com o preceito da liberdade individual assegurado pela Constituição. Na Rússia de Putin espiona-se à grande, sem maiores preocupações com tais sutilezas.
Outra peculiaridade russa é o pragmatismo. Snowden deve ter ficado apreensivo com a desenvoltura exibida nos últimos dias por Vladimir Putin quando surgiu a oportunidade de tirar proveito da enrascada em que o presidente Barack Obama se meteu no encaminhamento da questão síria. Putin ofereceu uma saída ao colega e depois zombou do "excepcionalismo americano" em artigo publicado no New York Times. Snowden, que recebeu asilo político na Rússia pelo prazo de um ano, deve saber que é forte candidato a virar moeda de troca entre Washington e Moscou.
Os russos não deixarão passar a oportunidade da visita dos parlamentares brasileiros em missão tão sensível para gravar tudo, atentos à possibilidade de a CIA usar a ocasião para penetrar seus serviços de contraespionagem. Detalhes cinematográficos à parte, há o desafio de interpretar os sinais emitidos pelos russos.
O Brasil não tem tradição nessa arte e já pagou caro por isso. Em 2010, com uma carta de incentivo de Obama na mão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva embarcou na bem-intencionada tentativa de mediar, juntamente com a Turquia, um acordo nuclear entre a comunidade internacional e o Irã. O então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, preparou a negociação convencido de que, embora de difícil execução, ela seria bem-sucedida, não só por ter mérito, mas porque Rússia e China já haviam indicado que não apoiariam a adoção de novas sanções econômicas contra Teerã no Conselho de Segurança (CS) da ONU. Os vetos russo e chinês eram a garantia de que o caminho da negociação era o único disponível.
Mas o atual ministro da Defesa estava equivocado. Não percebeu que, entre a resistência à imposição de novas sanções ao Irã e seu interesse em preservar as relações com os EUA e sua influência sobre o tema da não proliferação como membros permanentes do CS, Rússia e China optariam por este último e endossariam novas sanções propostas por Washington. Foi o que ocorreu. O veterano chanceler russo, Sergey Lavrov, há oito anos no posto, que visitava Washington enquanto Lula estava em Teerã, exibiu publicamente sua exasperação ante a petulância brasileira de se meter em assunto de gente grande antes de se reunir com a então secretária de Estado, Hillary Clinton, e Obama, que já haviam recebido o apoio de Pequim às sanções.
Os integrantes da Comissão de Relações Exteriores da Câmara que viajarem para Moscou devem ter presente que Sergey Lavrov é o interlocutor do secretário de Estado John Kerry no atual caso das armas químicas da Síria, que é o Irã da vez. Devem saber, também, que sua imunidade parlamentar não valerá um grama de caviar no momento em que desembarcarem em Moscou e mergulharem no eletrizante submundo da espionagem internacional.
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