domingo, agosto 18, 2013

Rónai - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 18/08

Quais as nossas possibilidades de não decepcionar o amor de alguém como Rónai pelo nosso país?


Ganhei de Hélio Eichbauer, como presente de aniversário, um livrinho precioso (entre outros cheios de interesse, ofertados por outros amigos, a que talvez venha a me referir aqui um dia): “Como aprendi o português e outras aventuras”, de Paulo Rónai. Conhecia Rónai de fama e principalmente pelas traduções de Balzac, por ele coordenadas, comentadas e introduzidas, que são um capítulo à parte em minha formação pessoal. Mas o pequeno livro que começa contando como ele, já adulto e professor na Hungria, aprendeu, sozinho, a nossa língua — a língua de um país onde ele então nem sonhava que iria parar — é um encantamento de leveza e profundidade. Rónai não contava com a possibilidade de que o crescimento do nazismo e do fascismo, com a guerra que produziu, o empurrasse para este país maluco, que ele tratou com tanta sobriedade, e no qual se entranhou de modo tão natural.

No livro, além da breve narrativa de como ele entrou em contato com a língua de Camões (que, aprendida em livros, não pôde ser reconhecida nos sons lusitanos, quando ele passou por Lisboa a caminho do Novo Mundo, mas foi reencontrada nos primeiros brasileiros que ele encontrou ao aqui aportar, trabalhadores que lhe portavam a bagagem e funcionários da alfândega), há compartilhamento de segredos da língua magiar (desde a informação — que eu já encontrara no “Budapeste” de Chico Buarque — de que todas as palavras húngaras têm acentuação tônica na primeira sílaba, fato que me parece enigmático e que tenho dificuldade de tentar reproduzir na cabeça, até a onipresença do cachorro nos provérbios e ditos húngaros), um artigo sobre a presença mundial de Camões e “Os lusíadas”, e sugestões para o aprimoramento do ensino em nossas escolas. Fagulhas de diálogos com Guimarães Rosa e entusiasmada reiteração da amizade e admiração por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira se distribuem pelas páginas do livro.

Bate em mim de modo forte a informação de que esse livro de Paulo Rónai foi publicado em 1956. Foi o ano que passei no Rio. Foi o ano em que Vinicius e Tom Jobim compuseram e lançaram o “Orfeu da Conceição” (e que me levou a contar, de volta a Santo Amaro um ano depois, por causa de uma entrevista de Haroldo Costa sobre a peça, que entrevi na TV de um amigo dos meus primos em cuja casa eu morei naquele ano, que o então já famoso letrista Vinicius de Moraes, de quem meus colegas falavam no ginásio Theodoro Sampaio, era preto — o que o próprio Vinicius, sem saber, ecoou, anos depois, na afirmação, incluída no “Samba da bênção”, de que ele era “o branco mais preto do Brasil”). Fico imaginando o quanto eu ansiava, em Guadalupe, por algo como o livrinho de Rónai, sem imaginar que isso estivesse ao alcance de minha mão. E, agora, leio as palavras dele sobre nossa língua, nossa cultura e nossa vida estudantil à luz de tudo o que aconteceu nesses anos que nos separam daquele. À luz do que os brasileiros pedem hoje de seu sistema educacional.

Neste exato momento, estou me preparando para entrar no palco e fazer o show “Abraçaço” para que seja gravado em DVD. E tenho na cabeça o livro simples e rico de Paulo Rónai. Quais as nossas possibilidades de não decepcionar o amor de alguém como Rónai pelo nosso país? Como devemos medir nossas responsabilidades? Leio que o ministro Joaquim Barbosa tratou o colega Lewandowski de modo no mínimo inapropriado. E que o dólar subiu mais do que em 2009. Uma manifestação é tida como desproporcional por, contando com 200 participantes, ter parado o trânsito da cidade por mais de sete horas. O Capilé, o Fora do Eixo e mesmo a Mídia Ninja, me contam, vêm sendo linchados nas redes sociais. Quantos esforços temos que fazer para dar conta do que nos é apresentado pela realidade! Precisamos de calma e firmeza, destreza e maleabilidade, tudo num ritmo adequado à capacidade de superação de crises. A leitura surpreendente desse livro pequeno e despretensioso me deu uma lição inesperada de senso de medida, de elegância eficaz, de amor respeitoso e ponderado. Paulo Rónai não saberia o quão grato um semidesorientado menino de 14 anos de Guadalupe se sente, aos 71, à sua inteligência, sua serenidade e sua confiança. Sim, a confiança natural que emana das páginas de seu livro, confiança em nós, é o que mais me marcou nessa leitura. Rónai exala uma confiança instintiva no Brasil. Tentemos viver à altura.

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