domingo, agosto 18, 2013

O que se evita constatar na crise de junho - OLIVEIROS S. FERREIRA

O ESTADO DE S. PAULO - 18/08
Nas manifestações ocorridas a partir de junho, observa-se que "partidos" não reclamaram a paternidade dos protestos - insiste-se no papel das redes sociais. Serviu-se desse instrumento não apenas o "Movimento Passe Livre", tanto assim que o "menos 20 centavos" foi uma entre as bandeiras que se levantaram, indicando que outros grupos reuniram quem quis manifestar sua santa ira contra o status quo. Essa multiplicidade de "convocadores" explica a ausência de um símbolo comum a todos os grupos.

A primeira reação dos analistas e das reportagens aos atos de violência foi tachá-los de vandalismo. Imagens da televisão contribuíram para dar essa visão das coisas, com marginais saqueando e desaparecendo no tumulto geral. À medida, porém, que tais atos se repetiam, ficou claro que o fogo nas mas, a destruição de vitrines e caixas eletrônicos de bancos, o incêndio de veículos e as pedras arrancadas do calçamento atiradas contra a polícia eram obra de mascarados que deixavam estampado em seu rastro o seu símbolo político, o da Anarquia (?). O fato de esse símbolo ter sentido mais amplo pouca atenção mereceu. A Bandeira Nacional presente nas manifestações pôde ser conspurcada pelo único grupo que traduzia com seu símbolo uma posição política; o dos anarquistas - contra o Estado que ela representa.

Quando discutimos essas manifestações, falamos de "ordem pública". Diz o artigo 5º da Constituição que "todos são iguais perante a lei (...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País o direito à vida, a liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...". No inciso XVI do mesmo artigo 5º se pode ler: "Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização (...) sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente Mais adiante: "Art. 5º, XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".

O constituinte preocupou-se em frisar o "sem armas", colocando-o entre vírgulas. O coquetel molotov é uma arma; assim, quem o usa não está amparado pela Constituição, mesmo quando se confunde com manifestantes pacíficos. Os que se dizem anarquistas agem como "grupo armado" e seu objetivo claramente declarado é "contra a ordem constitucional e o Estado de Direito", uma vez que se declaram dispostos a destruir a propriedade e o sistema financeiro.

Os crimes "contra a ordem constitucional" não estão capitulados como tal no Código Penal. Não são crimes contra as pessoas; um bom advogado de defesa arguirá que são atentados contra o patrimônio público e privado, o que coincide com a opinião de alguns delegados. Sendo a tese vitoriosa, a "ordem constitucional" estará sem defesa, porque qualquer cidadão, mascarando-se e portando o símbolo anarquista ou a Bandeira Nacional, poderá atentar contra "a segurança e a propriedade" amparado no Código Penal, que apenas prescreve penas para os crimes contra a propriedade cometidos por criminosos comuns. Crimes esses afiançáveis e passíveis de prescrição.

Esse registro permite abrir debate jurídico de grande relevância: os que praticam os crimes cometidos durante as manifestações e atentam contra a ordem constitucional têm ou não têm por objetivo "a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos,..", buscando "impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados"? Se constituem "ameaça ao Estado de Direito" - e as ocupações de Câmaras Municipais são atos que "tentam impedir, com o emprego de violência", o livre exercício de qualquer dos Poderes da União e dos Estados (acrescente-se municípios) esses crimes, não incursos nos artigos do Código Penal, estão nos artigos 16 e 18 da Lei 7.170/83, praticamente desconhecida por se chamar "Lei de Segurança Nacional".

Essas são, porém, questões para uma discussão entre especialistas, como os ministros do Supremo Tribunal Federal.

Há outro aspecto da questão "ordem pública": a ameaça permanente que sobre ela paira a partir das manifestações de junho. Para o cidadão comum, a "rua" demonstrou ser capaz de fazer prefeitos cancelarem o aumento nas tarifas de transporte. A "rua" também terá levado a presidente da República a convocar o plebiscito, arrancado verba para a mobilidade urbana, obrigado a criação do programa Mais Médicos. E não foi ela que fez o Congresso Nacional sair de sua sesta permanente e votar, a toda pressa, uma série de leis?

Se os movimentos que levam à ocupação de Câmaras Legislativas não impedem totalmente o trânsito e neles não se verifica a violência de nível em outros registrado, é porque não há espaço físico suficiente para ações sem risco de detenção. A questão é que anarquistas decidem quando e onde agir. A ordem pública está à mercê da decisão de uns poucos, que não são "cidadãos comuns": estão contra o Estado, acuam-no pela violência, impedindo-o de reagir, e levam o governo a temer que seja condenado pela opinião pública, seja isso o que for.

A não percepção do que está de fato em jogo e a preocupação voltada apenas para os deslizes do Executivo e os malfeitos do Legislativo indicam uma fuga da discussão do problema maior: o Estado, enquanto associação coativa, tornou-se escravo da vontade dos que perturbam a ordem pública e querem alterar, pela violência, a ordem constitucional. A população devota diria: "Senhor, tende piedade de nós!" - embora esteja sabendo que muitos dos que criaram esta situação de intranquilidade usam as palavras do papa para legitimar suas atitudes...

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