FOLHA DE SP - 27/08
Vinda de médicos cubanos anexou à reação corporativa uma utilização ideológica
Dos argumentos polêmicos contra a vinda de médicos do exterior, dirigentes corporativos da classe médica brasileira passaram a um histerismo gaiato e primário e já estão em atitudes fronteiriças de crimes, com a incitação aos médicos a "não socorrerem erros" que, imaginam, os estrangeiros cometerão. Sem trocadilho: trata-se de um processo nitidamente doentio.
A vinda de médicos cubanos anexou à reação corporativa a sua utilização ideológica pelos comentaristas conservadores. Já se acumulam bastantes indicações, aliás, de que também as exasperações de vários dos dirigentes corporativos da classe médica não são apenas corporativas. Seu recheio é ideológico, ainda tão nostálgico da guerra fria que não consegue disfarçar-se o suficiente, assim como se dá com os comentaristas. Quanto a isso, nada de novo, portanto. Nem de importante.
Mas, em tanta e tão descomposta reação em nome da classe médica, como ficam os carentes da atenção de um médico nas lonjuras onde nem um só foi jamais visto? Esses numerosos conselhos de medicina, essas inúmeras associações de médicos, esses incontáveis dirigentes corporativos nada têm a dizer que não seja contra o preenchimento estrangeiro dos buracos de sofrimento deixados por brasileiros pelo Brasil afora?
Não têm nem uma palavra proponente, alguma preliminar de plano, uma iniciativa viável, para intercalar nas reações vociferadas à vinda de estrangeiros? Não, não têm. Nunca tiveram, desde que as urgências da saúde pública voltaram a ser um problema de consciência nacional, perdida com as primeiras décadas do século passado.
O nível tão baixo em que está a ação dos dirigentes corporativos não é justo com a classe médica. As referências, digamos, domésticas a esse episódio parecem largamente favoráveis à vinda dos estrangeiros. E, nelas, os criticados por suas reações são "os médicos", assim generalizados.
GARANTIAS
Em artigo na Folha do dia 23, o jornalista Mário Chimanovitch define ironicamente como "almas sensíveis" e "almas bem-intencionadas" os jornalistas que repudiam as práticas do Estado, qualquer Estado, como as reveladas por Snowden, Assange e o recém-condenado Manning. Acha ele que a liberdade de informação não pode "se sobrepor ao direito do Estado de garantir a segurança do seu território e de seus cidadãos diante da ameaça letal, onipresente, do terrorismo islâmico inspirado em organizações como a Al Qaeda" (...).
Nada do divulgado pelos três implicou "ameaça letal" nem alimentou terrorismo. Mas Chimanovitch indaga, já explicitada sua resposta: "Que direitos, enfim, foram outorgados ao jornalista para que ele, como senhor absoluto da verdade, se empenhe em burlar os mecanismos do país onde trabalha ou que se configura em alvo de suas investigações', para expor dados que fatalmente vão comprometer medidas e pessoas empenhadas na proteção de seres humanos e bens nacionais?"
O jornalista a que Chimanovitch se refere não é menos "senhor absoluto da verdade" do que ele próprio mostra considerar-se, embora não tenha "alma sensível" nem "alma bem-intencionada".
Mesmo tal carência não impede de saber, porém, que na Alemanha nazista não era possível publicar nada sobre campos de concentração e outros crimes do Estado e do governo, a título de "garantir a segurança do seu território e de seus cidadãos diante da ameaça letal" de ciganos, homossexuais, deficientes físicos e, mais do que todos, judeus.
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