O ESTADO DE S. PAULO - 20/07
A sistemática postergação da reforma política sugere ser difícil corrigir decisivamente nosso modelo político vigente, cujas nuanças patrimonialistas, construídas ao longo da nossa História e vistas como convenientes por parte do mundo político, vêm sendo infladas na vigência da Constituição de 1988. As tímidas e limitadas iniciativas reformistas já aventadas têm esmaecido na discreta procrastinação das "boas intenções" ambíguas assimiladas pela indiferença do povo, e isso não mudará facilmente: para que a reforma avance é preciso que seus propulsores se sintam satisfeitos com a expectativa do julgamento positivo da História, aceitando com disposição cidadã eventuais dissabores políticos no curto prazo.
O conteúdo ideal da reforma política é complexo e abrangente. Alguns exemplos de temas polêmicos que conviria ser nela pensados: definição de parâmetros condicionadores de partidos doutrinária e pragmaticamente consistentes, e não meras legendas eleitorais e atores no conluio político; fidelidade partidária; representação proporcional mais arrazoada com a população dos Estados; sistema eleitoral (voto distrital/ misto/ proporcional); coligação partidária (haveria lógica em tê-la diferente Brasil afora se os partidos fossem consistentes...?); grilagem eleitoral (suplência, sobra de legenda...); financiamento das campanhas; reeleição (Executivo e Legislativo); o número de deputados (nos EUA são 435 deputados para uma população de 310 milhões, aqui são 513 para 193 milhões; nos EUA, dois senadores por Estado, aqui três) e vereadores.
Temas dessa natureza são em princípio inadequados à consulta direta ao povo (plebiscito) porque transcendem, compreensivelmente, sua capacidade de discernir sobre eles com convicção cívica bem fundamentada. Se houver esclarecimento objetivo (no longo prazo, papel da educação e no curto, da mídia), algumas questões talvez admitam perguntas e respostas simples, adequadas a plebiscito, mas a maioria não as admite e mesmo aquelas exigirão a formatação constitucional ou legal da opção definida na consulta popular.
Admitida a restrição ao ideal plebiscitário e obviamente excluída a solução via trauma revolucionário pelas mãos de "Vanguardas" dogmáticas, em regime constitucional democrático como o que vivemos a formulação do esboço da reforma e a decisão sobre seu conteúdo precisam ser conduzidas por assembleia representativa - no Brasil hoje, o Congresso Nacional. O esboço já poderia ter sido feito há muito tempo pelas comissões aventadas no início de 2011 no Senado e na Câmara dos Deputados. A paralisia (o esmaecimento...) de ambas não encoraja muito otimismo nesse encaminhamento constitucional, agora retomado em "segunda época" na Câmara, aos tropeços, que sugerem dificuldades para que se chegue a resultados positivos. Será possível chegar a eles na amplitude desejável? É um tanto otimista a esperança na revisão profunda, mas há que "torcer" para que ocorra.
Alternativa menos palatável: a formulação do esboço por grupo pluralístico competente, assessorado por especialistas temáticos. O grupo serviria ao processo como poderia ter servido a Comissão Afonso Arinos em 1987, que se valeu de contribuição diversa e capaz, cujo produto foi ignorado. Caber-lhe-ia esboçar a estrutura constitucional e legal da solução; deliberar, com o óbvio direito a mudar, seria encargo do Congresso. A hipótese parece ser uma versão de "vanguardismo" antidemocrático, mas a similitude é limitada porque o grupo deve ser aberto à diversidade (constituí-lo é o nó da alternativa, cujo trato excederia a dimensão razoável deste artigo).
Seja qual for o caminho, cabe à mídia exercer um papel vital, particularmente no encaminhamento constitucional clássico, aparentemente reiniciado: estimular a mobilização e a pressão atuante da opinião pública, para evitar que, de esperança, o processo vire "embromação" à Lampedusa (em O Leopardo) - algo como "Vamos mudar para que continue como antes".
A reforma política em profundidade é indispensável à produção de Executivos e Legislativos na qualidade exigida pela complexidade nacional e internacional. E condição para que a política seja atraente à emersão política de brasileiros de boa estatura cultural, íntegros e competentes, não estimulada no regime de 1964 e tampouco pela democracia pós-1985, dando ensejo a que o espaço político seja hoje permeado pela mediocridade e por discutível padrão ético. Na mão contrária, a reforma deve ser útil à rejeição de arrivistas, demagogos e "fichas-sujas", que transformam a política, de sacerdócio cívico, em farsa que os promove com vista à política como generoso meio de vida.
Há que reconhecer: será complicado fazer a reforma política de fato redentora. Mas se ela ocorrer, veremos o resgate da credibilidade da política, erodida há decênios, viveremos democraticamente uma ruptura modernizadora similar à que ocorreu revolucionariamente em 1930, então desembocando no autoritarismo. Estar-se-á propiciando ao País uma estrutura política capaz de "tocar" todo o processo revisor que se faz necessário, de formular e executar competentemente projetos nacionais expressivos, de funcionar no paradigma "servir ao País", em vez de "servir-se do País".
Em suma, estar-se-á criando uma classe política capaz de "construir condições para tornar possível o desejável" (frase de Fernando Henrique Cardoso), de conduzir o País a novo patamar de satisfação interna e de presença assertiva no planeta integrado, em que emergirão (já estão emergindo) muitos problemas nacionais e transnacionais exigentes de elites políticas cultas e competentes. O Brasil disporá da condução coerente com suas necessidades e sua dimensão relativa no mundo. Esse é o desafio político brasileiro, hoje.
Na reforma política, será possível chegar a resultados positivos na amplitude desejável?.
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