O GLOBO - 20/07
“Eu amo a rua”, diz João do Rio, em crônica que inaugura seu livro famoso; e acrescenta: “Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse que esse amor é partilhado por todos vós.” Amor que “une, nivela e agremia”, o “único que resiste às idades e às épocas”.
“A rua do alinhado das fachadas é um fator de vida das cidades” — “é a mais niveladora das obras humanas”, reitera. “A rua faz as celebridades e as revoltas.”
No início do século XX, quando essa crônica foi escrita, os pensadores do urbanismo ainda não haviam condenado a “rua corredor”, aquela “do alinhado das fachadas” de João do Rio. A condenação se deu pouco depois, enunciada pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, e disseminou-se mundialmente como febre avassaladora. Na cidade funcional, tudo seria autônomo: morar, trabalhar, recrear, circular; cada função em seu lugar.
O lugar da circulação não seria “povoado”, mas preenchido por veículos e pela velocidade. Tal modelo foi algoz das ruas preexistentes: não acabou com elas, mas as transformou em lugares inóspitos ao convívio, barulhentos, desinteressantes. Os edifícios foram dispensados de manter relação de escala com a rua; independentes do lugar e da paisagem, atenderam muito bem ao lucro imobiliário.
Ainda são frutos desse modelo funcionalista os bairros homogêneos, os condomínios isolados, os shopping centers — e, logo, as autopistas, os elevados e a ausência de calçadas. Também os Centros sem moradia, vazios à noite e aos fins de semana. (Lembremos que, no Rio, por trinta anos foi proibido construir habitação na área central — em benefício dos novos bairros.)
Em especial, o isolamento entre funções urbanas exige o uso de condução para deslocamentos banais e leva ao aumento no tempo de viagem casa-trabalho, alcançando o impasse que hoje assombra nossas cidades.
No entanto, quando viaja ao exterior, em geral, o brasileiro busca cidades com espaços públicos bem estruturados, onde se caminha por ruas-corredores de calçadas bem mantidas, de usos diversificados. A escala urbana adequada, até em cidades de arranha-céus, como Nova York, garante ruas nas quais o convívio é realçado por inúmeras atividades ao nível do passante. Cidades como Paris ou Londres mantêm edifícios corporativos de alto nível empresarial integrados a áreas residenciais, comerciais e de serviços de pequena e média escala.
Quando as velhas ruas das cidades brasileiras se enchem de jovens a exigir mudanças, retomam momentaneamente a antiga vitalidade — e reivindicam uma qualidade urbana que sabemos ser possível; um outro paradigma urbanístico é desejado. A cidade da segregação, do isolamento, da falta de serviços, da “imobilidade” de custo proibitivo e da circulação sem vida — esta cidade não corresponde ao sonho contemporâneo.
Paradoxalmente, o desejo da cidade de hoje está cantado há cem anos por João do Rio, com ruas que unem, nivelam e agremiam em um amor compartilhado por todos. Ruas que têm alma.
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