GAZETA DO POVO - PR - 20/07
Na briga entre médicos e governo, está em jogo o lugar da medicina na vida brasileira
O caso da “exportação dos médicos” anda bem longe da bandeira branca, amor. Nem poderia ser diferente, em se tratando de um dos setores mais traumáticos, com perdão ao trocadilho, da sociedade brasileira. Mas pelo menos um saldo positivo pode ser apontado – todo esse arranca-rabo chama a atenção para a urgência de uma sociologia da saúde, questão sobre a qual o país deveria aproveitar a deixa e se debruçar.
Nos círculos acadêmicos, falar da determinância da saúde nas relações sociais é moeda corrente. Vale citar o belíssimo livro Carne e pedra, de Richard Sennett, que entre seus muitos méritos mostra que existe um nó entre ser saudável e ter vida pública. Saúde e doença teriam, sim, a ver não só com desenvolvimento econômico, mas com desenvolvimento político-social. Em miúdos, o sistema de saúde é o retrato escancarado da sociedade. A contar por Sennett, o sistema de saúde não deve ser analisado apenas por sua eficiência tecnocrata, mas por seu uso e significado. Importa nesse debate, sobretudo, a cultura de saúde. Nos dois itens, saímos mal na fotografia. Se do ponto de vista técnico nosso sistema é perdulário, do ponto de vista cultural reflete todos os abismos da sociedade brasileira. A análise, porém, é mais profunda. Embora desigual, o sistema de saúde virou uma espécie de trincheira para se proteger da sociedade da violência. A população espera do sistema algo mais que atendimento, remédios, receita. Quer palavra. Quer hospitalidade.
Tome-se como exemplo a rede de unidades de saúde de Curitiba. Trata-se de uma das máquinas mais incríveis de administração pública, geração de dados, votos – ou perda deles, como se viu na última eleição – e convivência. Os agentes de saúde passam todos os dias pelos quarteirões, divididos em zonas censitárias, nos moldes do IBGE, e marcam nos formulários em que pé andam as famílias. Sabem se há uma adolescente grávida, um agregado que veio do Norte, uma morte recente, um contaminado pelo HIV. Mais – agentes anotam se a família lê jornal, se há cachorro na casa, mais uma ou duas pessoas na casa do que quartos e camas, se as paredes estão em boas condições, o desemprego do João, o casamento da Maria. Nenhum outro setor tem tanta informação atualizada, em tempo real, quanto a saúde. Calcula-se haver mais de 1,5 milhão de fichas únicas. Graças a esse maravilhoso sistema de estatística, as unidades podem, por exemplo, resolver o enigma de quantos carrinheiros há na capital paranaense. E contar para nós quantas pessoas sofrem doenças provocadas por más condições sanitárias.
Infelizmente, por falta de visão ou coragem, esses dados e outros tantos não são públicos, o que inibe a percepção da força de super-herói dos quadrinhos que resiste no sistema de saúde. Um levantamento bem apurado pode mostrar que as unidades e similares recebem mais gente que as praças públicas e que são utilizados, sim, como espaços de proteção. Unidades têm guardas, grades, funcionários públicos e oferecem atividades de lazer – principalmente para idosos. Se não são um ninho, quase.
Com todo esse potencial, não causa espanto que o sistema de saúde seja alvo de tantas tensões sociais. Seu significado pode não ultrapassar o senso comum, um lugar para tratar a doença, mas seus efeitos são notáveis. Mal não faria se ganhasse vulto na chamada sociedade do conhecimento a percepção da sociedade da saúde. A cultura elaborada saiu na frente e percebeu esse filtro não é de hoje. São inúmeros os seriados americanos que têm como cenário os hospitais. A novela brasileira parece ter descoberto o filão. Esses espaços despertam a curiosidade, são propícios para o folhetim, mas só cabem na ficção porque ocupam lugar grandiloquente na realidade.
Na vida real, ainda há muito choro e ranger de dentes quando o assunto é o sistema de saúde. Cada vez mais os médicos são vistos com reserva. A formação humana deles de fato transcende à recebida por um mecânico de automóveis? Os planos de saúde – do mesmo modo – são descritos como as piores tiranias. A hospitalização e a hospitalidade não andam no mesmo passo. A população vê com um pé atrás a insatisfação dos médicos, que se sentem injustiçados diante das últimas do governo. Há um ruído no meio do caminho, uma relação de amor e ódio. As grandes cidades e o estresse que geram, as epidemias de hipertensão e diabete, e – tragédia – o avanço do sofrimento psíquico, tal como previu Jung no século passado, fazem com que desejemos a saúde como nunca. Mas nos sentimos parte de uma paixão não correspondida. Mágoas, como se sabe, são péssimas conselheiras.
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