FOLHA DE SP - 01/06
Insatisfação com governantes mostra que PT perdeu capacidade de se descolar da "política tradicional"
Na semana passada sugeri que o solo das insatisfações que desfilam pelas ruas do país seria sobretudo o mal-estar urbano --e as respostas, portanto, deveriam partir mais do âmbito local do que da política central. Está claro, entretanto, que a insatisfação difusa catalisada pelo aumento da tarifa e pela violência policial também se dirigiu violentamente contra governos e políticos, como demonstram as pesquisas Datafolha.
A dúvida é se temos, nesse plano, uma rejeição mais de forma ou de conteúdo. O que se rechaça são partidos e mediações da democracia representativa ou o modo como atuam? Ou ambos?
A "Economist" dedicou capa na semana passada aos protestos que pipocaram pelo mundo. Para a revista, as manifestações de 2011 guardam entre si muito em comum, da mesma forma que nos anos insurrecionais de 1848, 1968 e 1989.
Num clima descrito pela reportagem como de "festa e raiva", manifestantes de São Paulo, Istambul ou Sofia estariam juntos no repúdio à corrupção, à ineficiência e à arrogância das autoridades no poder --e isso diz respeito a democracias.
Como os protestos acontecem em países que adotam diferentes sistemas, o problema parece ser menos de reforma política e mais de fundo: seja qual for o modelo representativo, políticos e partidos perdem identidade, se dissociam das demandas da sociedade e se aferram ao poder.
No Brasil, o PT surgiu como promessa de mudar o padrão. Mesmo que se discordasse da coloração esquerdista das propostas da sigla, havia no início uma impressão geral de que o discurso contra a "política tradicional" era uma novidade para valer.
Mas, com a conquista do poder, também o PT esqueceu o que tinha escrito. A "realpolitik" passou a reinar, justificada pela urgência de implementar uma pauta de desenvolvimento e combate à pobreza. E de fato isso ocorreu. O país aproveitou o ciclo mundial favorável, soltou o crédito e cresceu. A oferta de emprego disparou e houve um notável processo de inclusão --menos pela cidadania e mais pelo consumo.
Ocorre que nesse processo o PT perdeu justamente sua capacidade de se diferenciar da "política tradicional". O partido comprou o apoio dos "picaretas com anel de doutor", andou para lá e para cá com dinheiro na cueca, aliou-se a antigos inimigos e transformou o Estado num assentamento onde lobões, sarneys, collors e calheiros não têm o que temer --e podem continuar tomando conta do galinheiro.
Falar contra a corrupção tornou-se "udenismo", categoria do tempo do Simca Chambord, e Lula nos explicou que na nossa política "até Jesus teria que se aliar a Judas". Palmas! "O que importa é que somos uma nova potência global", justificavam os militantes.
Será?
O tempo passou, os ventos mudaram, a economia esfriou e aumentou a percepção de que ainda estamos muito longe de chegar lá em matéria de educação, saúde, transporte, segurança. As coisas, sim, melhoraram, mas o discurso oficial criou um bônus artificial, aquilo que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso chamou de "camada virtual de bem-estar". Como assinalou com humor o editorial de ontem desta Folha, parece que éramos infelizes e não sabíamos.
Nesse cenário de descrédito e indiferenciação, prevalece o sentimento que se manifesta no famoso slogan: "Que se vayan todos!"
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