O Estado de S.Paulo - 24/06
Aconteceu na Revolução Verde, massacrada depois do roubo da eleição presidencial no Irã, em 2009. E também na Primavera Árabe, uma estação que, vista pelo retrovisor, está cada vez mais fria e desfolhada. Aconteceu na Praça Taksim, em Istambul, e de novo, na última semana, em proporções continentais, de Porto Alegre a Vancouver, no Canadá.
A mídia social é facilitadora de ativismo político como nenhum outro meio de comunicação da história.
Mas, longe da Cinelândia e da Praça da Sé, acompanhando os protestos e outros fatos da semana numa rotina que cada vez mais inclui a mídia social como fonte de notícia, tive lembranças do meu começo em redações, ainda estudante de jornalismo. Observava editores experientes à minha volta negociando mentalmente com o próprio autocensor instalado pela ditadura militar. Eles tinham anos de prática. Uma citação, um adjetivo poderiam ser a diferença entre uma reportagem ver a luz do dia ou ir para o porão dos cortes.
Neste tempo de explosões populares multiplicadas pela rede social, temos um novo censor e ele não usa uniforme verde-oliva. É possível que não esteja nem usando um completo traje civil, esteja de cuecas com seu tablet em casa. É o internauta colérico que canaliza a sua indignação pela rede e assumiu um poder extraordinário de colocar não apenas figuras públicas, mas qualquer cidadão na defensiva. Não se trata mais do debate entre o que é a justiça ou a demagogia do politicamente correto.
A expressão, este direito tão caro na democracia ocidental, está sendo amordaçada pela velocidade e a exposição planetária de queixas mesquinhas ou denúncias infundadas. E, mesmo quando a indignação tem fundamento, a velocidade e a virulência não permitem que se veja o todo, só o tweet.
O jornal britânico que leio diariamente, o Guardian, anunciou com destaque que seu concorrente The Evening Standard estava sob pressão para tirar o milionário colecionador Charles Saatchi de sua equipe de colunistas. Até um Talibã com sinal 3G numa caverna do Afeganistão sabe que Saatchi é o marido da chef e autora Nigella Lawson e foi fotografado apertando o pescoço da mulher num restaurante londrino. Pela briga, que foi interpretada como flagrante de violência doméstica, ele foi advertido pela polícia ao se apresentar voluntariamente na delegacia. Deu uma entrevista lamentável, dizendo que não tudo não passou de um "arrufo brincalhão".
As chamadas para as linhas de auxílio a vítimas de violência doméstica quadruplicaram na Grã-Bretanha. A vastamente querida Nigella saiu de casa e parou de tuitar suas mensagens de esperança e carboidratos. Mas, a não ser por ter tirado a aliança de casamento, a chef continua em silêncio e, fora as imagens granuladas que realmente sugerem agressão, nenhum dos internautas fantasiando sobre todo tipo de vingança contra o patético Saatchi pode dizer que conhece os fatos entre o casal.
E vem o Guardian, um jornal que acaba de entrar para a história com o vazamento da espionagem da Agência de Segurança Nacional americana, num gesto de defesa da nossa privacidade, e faz coro para um outro jornal demitir seu colunista. É preciso calar a boca de um milionário arrogante que pode ou não ser violento com sua mulher. Como prova da pressão indignada, o jornal cita dois colunistas concorrentes. Mas bastou a manchete do Guardian para a tuitosfera se acender com uma suposta campanha pró-extinção de uma coluna de opinião.
Vejam bem, minha pinimba com Charles Saatchi precede seu casamento com Nigella. O fundador e ex-executivo da maior agência de publicidade do mundo e o inventor de slogans que elegeram Margaret Thatcher é uma influência nefasta sobre a arte contemporânea britânica. Com seus bolsos profundos, seu comercialismo e interferência com o trabalho de curadores, o que ficou claro na infame exposição Sensation, em 1999, ele já merecia meu desprezo. Mas, se ele for calado como colunista por um episódio que ainda não foi esclarecido, nossa liberdade de expressar opinião vai sendo progressivamente imobilizada em formol, como os tubarões do insuportável Damien Hirst, um artista inventado por Saatchi.
Este episódio é apenas um e parte de um jornal que aprecio. Mas, na Babel digital, a paranoia precisa de pouco para ser despertada e desocupados se investem de patrulheiros de tudo - política ou costumes, religião ou ateísmo. Este "poder das massas" tão exaltado como um presente da mídia digital tem sua face totalitária. Censura o discurso, seja ele da adolescente com medo de bullying, ou do político eleito que precisa tomar uma decisão impopular. Neste cenário, o poder vem menos do voto do que de uma conta na rede social com milhões de seguidores.
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