O ESTADÃO - 24/06
Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano assassinado em 1975, época em que o mundo estava em convulsão e as manifestações violentas eram uma epidemia global, era um contestador radical e homossexual assumido quando essas duas coisas davam cadeia (hoje dão prêmio) e, como tal, um ídolo da esquerda revolucionária do seu tempo. Mas, para desgosto das facções do seu fã-clube que acreditavam que a santidade era um atributo exclusivo do proletariado do qual os manifestantes de então pretendiam ser "a vanguarda", dizia que, "quando a polícia e os estudantes se confrontam nas ruas, a polícia é que é o povo". Foi o que me veio à lembrança na quinta-feira, quando constatei, digamos, o "protagonismo" com que a polícia espancava manifestantes quase dentro de um hospital do Rio.
Eles não estavam seguindo ordens. Aquela fúria, que eu já tinha assinalado com arrepios de incômodo em vários outros episódios pelo Brasil afora nos últimos 14 dias, era tão "espontânea" quanto esta edição brasileira da "manifestação em rede" que guarda não poucas similaridades com as que têm pipocado pelo mundo afora.
Com a esquerda daquela época no poder hoje, neste Brasil de onde não se vê o Muro de Berlim, o que mudou em relação aos tempos de Pasolini foram a roupagem ideológica da contestação dos estudantes e o entendimento geral de que "o povo" tanto pode encarnar Deus quanto o diabo. Mas a questão de classe simbolizada nos confrontos continua a mesma. É por isso que, se me entusiasmam e enchem de esperança quando as avalio só com um olhar brasileiro, essas manifestações não me animam tanto quando as coloco num contexto mais amplo.
Quem está nas ruas puxando essa parada (na qual tomam carona incendiários, saqueadores e pit bulls de todas as vertentes da psicopatia) não é a classe dos excluídos da economia, é a classe dos desprezados da política nas democracias de massa.
Aquela em nome de quem nenhum partido fala e para a qual nenhum partido apela. Aquela que só é chamada para pagar a conta da festa das classes eleitoralmente significativas (entre elas a dos muito ricos) a quem os governos não se cansam de fazer afagos e todos os outros partidos cortejam, à custa do presente e do futuro dessa classe média que se tornou classe média por esforço próprio. Espremida entre os "ganhos de produtividade" do infindável tsunami das fusões e aquisições e os impostos e a inflação que sustentam o welfare state lá fora ou a "rede de proteção" dos sem nada, mas cheios de "bolsas" aqui dentro, esta não é bom negócio representar quando o que se tem em vista são eleições.
"Não nos representa! Não nos representa!" é o refrão mais repetido na cacofonia de pleitos dos cartazes das manifestações. Mas, lido pelo avesso, mais que um grito de guerra ou um esgar de rejeição, ele soa como um pedido de socorro: "Ninguém me ama, ninguém me quer...".
A última eleição registrou quase 29% de votos em branco, 9,85% de nulos e 19,1% de abstenções em todo o País. São esses os desprezados que os caçadores de votos ignoram. É deles que os governos tomam 34% do PIB que não viram nada senão suborno eleitoral ou presentes do BNDES para os outros 71%.
Roubados agora; roubados do seu futuro pelo buraco que se vai cavando por baixo da sucateada infraestrutura que deveria sustentar as suas condições de trabalho mais adiante. E tudo só para dar aos donos de tetas mais tempo como donos das tetas.
No país da bunda de fora, tudo é mais explícito e mais ofensivo, é verdade. Mas o fenômeno é universal. Num mundo de especialistas em pedacinhos da realidade, a política não poderia ficar de fora. A democracia de massa leva obrigatoriamente à especialização na caça ao voto, mesmo para os mais bem-intencionados. Sem isso não se chega ao poder, mesmo se a intenção for usá-lo para o bem. É isso que põe em risco a sobrevivência da democracia, a forma menos ruim de se estruturar o poder.
A democracia que conhecemos foi inventada para estabilizar uma sociedade homogênea, a única tão homogênea assim no ponto de partida que uma série improvável de acidentes históricos produziu. Uma sociedade de pequenos proprietários alfabetizados que não tinham tido tempo para cavar grandes fossos de desigualdade uns entre os outros.
A regra de maioria só não oprime quando o fosso não é muito amplo nem muito fundo e, portanto, os interesses são próximos e não excludentes entre si.
Só assim o sonho da tolerância pôde descer dos devaneios dos filósofos e se instalar no panteão dos fundamentos de uma ordem social concreta.
Mas o fosso está se ampliando e afundando mesmo na sociedade que inventou a democracia moderna. No apogeu da sua trajetória rumo à igualdade de oportunidades, ela trombou de frente com a única contribuição concreta do socialismo real além dos monopólios estatais, que foi a legião de miseráveis sem nenhum direito que ele criou e que, derramados pela internet sobre o mercado globalizado, estão empurrando o mundo todo de volta ao capitalismo selvagem.
As classes médias urbanas educadas e conectadas, a tal "burguesia" que o PT odeia e que, em todos os cantos do mundo, não tem quem fale por ela e reage como pode, via internet, é, onde quer que se olhe, a vítima empobrecida dos "campeões nacionais", dos too big to fail, dos monopólios estatais ou seja lá que nome lhes deem os governos que os patrocinam e tornam indecentemente ricos e que, em troca, financiam as vastas operações de compra de votos para seus patrocinadores via a promoção de miseráveis para miseráveis-e-um-pouco e de desempregados para meio-empregados em curso no planeta inteiro.
Eles são os primeiros emigrantes para o Novo Mundo da Aldeia Global lá do futuro, onde, então em escala planetária, haverão de ser reeditadas um dia reformas como as da Progressive Era (1870-1920) com que os americanos ensinaram o mundo a domar e opor uma à outra as feras do Capital e do Estado, o que permitiu que quatro ou cinco gerações de privilegiados que os imitaram em diferentes rincões do planeta tivessem um gostinho antecipado do que ainda há de ser a sociedade global de amanhã.
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