Valor Econômico - 24/06
Em 5 de junho, dia mundial do meio ambiente, a presidente Dilma Rousseff fez um discurso de dez páginas, durante reunião do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, em Brasília, tentando mostrar como o Brasil caminha para a economia de baixo carbono. Mas foram oito linhas de sua fala, que ganharam destaque no dia seguinte.
"Temos de enfrentar o fato de que, se continuarmos a fazer hidrelétricas a fio d"água (...), haverá uma tendência inexorável de aumento das térmicas na nossa matriz", era o resumo da ópera. A presidente não disse, mas a alternativa às hidrelétricas a fio d"água são hidrelétricas com reservatórios, provavelmente grandes, certamente na Amazônia. Nesse discurso não dito há espaço para muita controvérsia.
As três grandes usinas que o Brasil constrói neste momento, e onde investe bilhões, são a fio d"água. Ali as turbinas gerarão energia a partir do fluxo natural do rio, sem grandes quedas - no fio da água. A água que entrar no reservatório sairá rapidamente para virar megawatts. As usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará, são assim.
Projetos novos, como São Luiz do Tapajós, idem - desenhada para 6.133 MW e inundar 1.630 km2 de Amazônia. Projeto antigo, como a gigante Itaipu, no rio Paraná, também é a fio d"água. Tem lago-monstro, de 1.350 km2, potência instalada para 14 mil MW e fornece 18% da energia consumida no Brasil. Ou seja, ser a fio d"água não é garantia de pouca inundação.
O que está nas entrelinhas do discurso presidencial é que as próximas usinas brasileiras terão reservatórios plurianuais, para permitir acumulação de água e garantir que a capacidade de geração de energia não fique tão dependente do regime de chuvas. Funcionam como um "back up" para a época de seca e evitam o que acontece hoje: sem chuva e com reservatórios baixos, ligam-se as térmicas, o que aumenta gastos e a emissão de gases-estufa. Pior, a segurança energética em risco faz ressurgirem leilões para térmicas a carvão, o que não acontecia desde 2009.
O discurso da presidente segue a lógica do setor elétrico: reservatórios são fundamentais. E como o país só utiliza 7% do potencial hidrelétrico da região Norte, basta ligar lé com cré para entender que o alvo é a Amazônia.
Mas há outras lógicas além daquela. Há quem suspeite que a conversão dos rios brasileiros em megawatts pode não dar certo em muitos casos. "Infelizmente o governo está achando que pode brigar com a geografia", diz o professor Celio Bermann, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo. Há grandes planícies na Amazônia, ou seja, grandes reservatórios são possíveis só se forem alagadas áreas enormes, com todos os problemas sociais e ambientais a reboque. "Não sou contra usinas na Amazônia, mas é preciso que sejam concebidas levando em consideração o bioma, as características geográficas, os aspectos sociais e ambientais."
Bermann, que ajudou no desenvolvimento dos estudos de aproveitamento hidrológico do rio Xingu na década de 80, é um crítico severo de Belo Monte. Lembra que estão sendo investidos R$ 32 bilhões em uma usina com potência instalada para gerar 11 mil MW, mas que durante vários meses, em função da baixa vazão do Xingu, não produzirá mais que 1.100 MW.
"Irão necessariamente construir uma usina rio acima", desconfia. "A discussão de retomar o modelo antigo dos grandes reservatórios é reabrir campo para que os antigos projetos do Xingu possam ser refeitos", acredita. "Olha o perigo aí", concorda Philip Fearnside, pesquisador-sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e que há mais de 30 anos estuda a região.
O governo diz que desse risco não se corre. Em 2008. o Conselho Nacional de Política Energética baixou uma resolução garantindo que não seriam construídas mais hidrelétricas no rio Xingu além de Belo Monte. Uma das usinas projetadas no passado, Babaquara, inundaria 6.140 km2 e afetaria diretamente os índios caiapós, sempre em pé de guerra contra o projeto. "Não dá para condenar todas as hidrelétricas. Mas o que precisa acontecer, e não está acontecendo, é uma discussão pública e democrática, de como irá se usar a energia", diz Fearnside.
A safra de grandes hidrelétricas do passado produziu uma série de erros tenebrosos. O fantasma da hidrelétrica de Balbina é o que mais assombra. Projetada para acabar com a falta de energia de Manaus, é um dos maiores desastres ecológicos, financeiros, energéticos e sociais da história do país. Construída no rio Uatumã, no Estado do Amazonas, inundou 2360 km2 de floresta para uma capacidade de geração pífia, de 250 MW. Em 1983, o Uatumã baixou tanto que o rio virou um pequeno igarapé e os engenheiros da Eletronorte encarregados das obras o cruzaram em carros comuns, descreve Fearnside. "Cada megawatt nominal de Balbina sacrificou 31 vezes mais floresta do que Tucuruí", conta.
O custo da usina duplicou, os peixes morreram, a madeira não foi aproveitada, a qualidade da água ficou ruim. A vegetação cresceu nas águas rasas, produzindo metano, um gás-estufa 25 vezes mais nocivo que o CO2. Balbina afetou dramaticamente o destino dos waimiris-atroaris que viviam por ali. É a pior usina do país. "O maior benefício de Balbina é a lição sobre como não planejar o desenvolvimento da Amazônia", diz Fearnside.
É verdade que hoje se conhece muito mais da Amazônia, e o setor elétrico tem mais tecnologia para não repetir erros do passado. No discurso do governo, no entanto, não se escuta nada sobre otimizar o consumo, reduzir, ter mais eficiência. Fearnside lembra que 5% de toda a eletricidade do Brasil é usada para esquentar água em chuveiro elétrico, quando se poderia usar energia solar. Chuveiros elétricos são baratos e poucas cidades no Brasil têm estrutura para gás canalizado, mas aqui há consenso: a hora do banho simultânea no país sempre foi um pesadelo para o sistema elétrico.
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