O ESTADÃO - 20/06
Tudo já foi dito. Tudo que era possível entender para se poder dizer, até agora, já foi dito. Com menor ou maior verve e estilo, conforme o autor. E, no entanto, nada foi esclarecido: as causas, o porquê, as consequências continuam em busca de explicação: quais são? Quem as deslinda? No meio das manifestações, das passeatas, das turbulências e dos protestos, e para quem assistia a tudo pelas TVs, uma coisa, ao menos, parece fora de dúvida: os manifestantes não queriam saber da presença de nenhum político conhecido nem de nenhum partido político, "da base" ou "da oposição". Os poucos que se arriscaram a tentar se imiscuir nas manifestações foram vaiados e expulsos, em alguns casos de forma truculenta. A "voz das ruas" não quer saber dos cochichos da politicalha.
Nossa presidente nos disse que é preciso ouvir "a voz das ruas". Mas ela também não tem a menor ideia do que é que a "voz das ruas" está dizendo. Na juventude ela pegou em armas pensando que estava atendendo à "voz das ruas". Enganou-se. As ruas não estavam pedindo para ninguém pegar em armas na ocasião. Deve estar equivocada de novo, se pensa que está ouvindo e entendendo direito o que as ruas estão dizendo.
Na verdade, o que se ouviu nas ruas até agora é pura algaravia. Altissonante, ensurdecedora, ameaçadora para muitos ouvidos, mas algaravia. Só o primeiro grito desencadeador é que foi claro: queremos passe livre (no transporte público). Depois, repórteres de todos os veículos se puseram em busca de um discurso inteligível, em vão.
É relativamente fácil adivinhar o que é as ruas não querem: não querem a soberba, a displicência, a negligência, o despudor, a corrupção e os desmandos que a classe política brasileira vem descaradamente praticando há anos, desde que conseguiu ocupar o lugar dos militares, que, aliás, com o torniquete na imprensa, nas escolas e na opinião pública em geral, abriram caminho para a impunidade e o descaramento civil dos políticos. A revolta parece dizer com clareza o que não quer.
Mas da revolta, ou das revoltas, não nascem necessariamente propostas de ação prática. Da revolta pode nascer uma revolução quando uma proposta viável precede à revolta e a conduz. Foi o caso das revoluções comunistas do século passado, da Rússia até Cuba. Ou, muito antes, na Revolução Francesa, que nos trouxe os governos "do povo, pelo povo e para o povo", conforme nossas Constituições, em lugar dos governos "do rei, pelo rei e para o rei", de até então. A revolta do povo alemão contra seus governos semimonárquicos e contra os sacrifícios que a derrota na 1.ª Guerra impôs só desaguou no regime nazista de Hitler porque havia um partido nazista preexistente e uma proposta nazista que o povo alemão, bem ou mal, aceitou como salvadora.
Portanto, a proposta precisa ter muita credibilidade, força mobilizadora e senso de oportunidade. Nesse caso, ela pode surfar na revolta, tomar conta do movimento e conduzi-lo. O que, por sua vez, exige uma organização, um partido formulador da proposta e promotor da organização.
Por enquanto, as ruas querem "mudar tudo isso que está aí". A manchete da Folha de terça-feira sintetizava o querer revoltoso: Milhares vão às ruas 'contra tudo'... Mas isso não é proposta. É protesto. E esse protesto o PT e Lula já tinham martelado na campanha eleitoral. Tanto não era proposta de verdade que foi esquecida no primeiro mês de governo petista.
O fato é que o povo purga frustrações acachapantes de esperanças políticas há mais de 60 anos. Desde o suicídio de Getúlio Vargas, seguido pouco depois pela estrondosa vitória e abjeta renúncia de Jânio Quadros, o que iria "varrer toda a bandalheira". Veio o golpe militar para "acabar com o comunismo e a corrupção". Aniquilou vários comunistas e promoveu a corrupção. Collor arrasou nas urnas combatendo "os marajás", aos quais aderiu gostosamente antes de renunciar para não ser deposto.
Arrisco opinar que esse acúmulo de frustrações levanta a voz das ruas.
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