FOLHA DE SP - 12/06
Nas fotos de "Genesis", Sebastião Salgado parece construir o planeta com as próprias mãos
As florestas estão desaparecendo, as geleiras derretem, o aquecimento global preocupa, mas certamente uma coisa não falta no planeta. Refiro-me às fotografias da vida selvagem.
Nada contra esse tipo de fotos. São invariavelmente lindas: revoadas de colhereiros, visões aéreas da Amazônia, índias com filhos na rede e na escuridão.
Quem pensa já ter visto tudo a esse respeito vai mudar de ideia, provavelmente, se abrir o novo livro de Sebastião Salgado.
"Genesis" (editora Taschen) é um volume bem grande e pesado, com fotografias em preto e branco do artista mineiro, tiradas nos lugares mais remotos do mundo. Lá estão os índios, os baobás, as geleiras, os platôs e os pinguins.
Mas o que vejo nesse livro não tem comparação com nada do que eu conhecia. É como se, até agora, eu tivesse ouvido apenas uma caixa de música e descobrisse, ao vivo e na frente da orquestra, uma sinfonia de Beethoven.
Em vez de mostrar uma espécie de pureza idílica e bonitinha, as fotos de Sebastião Salgado surgem numa erupção de dramaticidade, de agonia, de poder.
Talvez nosso hábito seja o de pensar as reservas ecológicas como algo de "intocado", de perfeito em si mesmo, que se espraia na total ausência do homem.
Justamente, o livro de Sebastião Salgado não se chama "Éden" nem "Paraíso". O título "Genesis" dá a impressão de que algo está ainda a ser criado, de que forças gigantescas e, de certo modo, feitas à imagem e semelhança do próprio homem, estão sem descanso a fabricar o mundo.
A formação de cacto que nasce no meio de um derramamento de lava, nas ilhas Galápagos, não parece "estar ali", de forma "natural". É como se tivesse sido plantada por um jardineiro raivoso e enlouquecido, ainda exausto do esforço de derreter a pedra e movê-la, aos golpes, pela encosta do vulcão.
Viramos as páginas, e encontramos na África um grupo de elefantes. O que era bicho, entretanto, achata-se na foto, ganhando a simetria mineral de uma barreira de basalto.
O melhor modo de resumir o impacto dessas fotos seria dizer, acho, que Sebastião Salgado não parece trabalhar simplesmente com os olhos e a lente da câmera. É como se, em vez dos olhos, ele usasse as mãos.
Ele conta, no prefácio do livro, que depois de presenciar cenas de brutalidade extrema em países como Ruanda, tinha perdido a esperança na humanidade. Na mesma época (fim da década de 1990), foi cuidar de uma propriedade em Minas Gerais que, no passado, tinha sido a fazenda de gado de sua família.
Sebastião Salgado e sua mulher, Lélia Wanick Salgado, dedicaram-se (com sucesso) ao reflorestamento do lugar. Talvez venha daí a sensação de voluntarismo, de poder, de empreitada, que as fotos transmitem. O mundo natural surge como resultado de um trabalho titânico.
E, nas fotos de alguns bichos, não há como não reconhecer algum tipo de marca demasiado humana. Um tartarugão nos olha como se fosse James Cagney, num dos seus papéis de gângster, mandando-nos embora da região sob seu domínio.
A pata de um lagarto, cinco dedos sobre a pedra, ao mesmo tempo delicada e agressiva, vive uma inteligência própria --talvez porque sejam especialmente humanas as proporções do pulso e do antebraço.
Quando aos índios, vivam eles na América, na África ou perto do polo Norte, a visão de Salgado supera, sem negá-los, os pressupostos da antropologia. De um lado, em muitas fotos ele capta o que há de mais "diferente", de mais exótico possível.
Uma cultura africana, por exemplo, usa adornos no lábio inferior que fazem os batoques dos índios brasileiros um enfeitizinho de criança tímida.
Ao mesmo tempo, Sebastião Salgado não abandona um olhar "estético" e "ocidental" sobre muitas das pessoas retratadas. A beleza de alguns rostos e corpos é valorizada ao extremo em suas fotos. Em outra imagem, um grupo de velhos xamãs kamayurá posa solenemente, contra um fundo do mais absoluto negro --e não há dúvida de que o fotógrafo se inspirou, aqui, nos retratos coletivos de Rembrandt.
Ocidente, Oriente, norte, sul: não se trata, em "Genesis", da atitude paternalista de celebrar nossas "diferenças" ou nossa "fraternidade planetária". Sebastião Salgado humanizou tudo, na verdade, graças ao procedimento inverso. Vê o mundo como se estivesse de fora, como se fosse ele próprio uma força impessoal, cujo amor só se expressa em energia, em criação.
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