O GLOBO - 29/05
Sem pensamento estratégico vamos perder o que construímos." Assim falou Lula num encontro recente com intelectuais argentinos, segundo manchete do jornal pró-governo "Página/12". Para enfatizar que não se referia apenas ao Brasil, o ex-presidente acrescentou: "Ou crescemos juntos ou ficamos pobres todos juntos." As frases revelam duas preocupações. Por um lado, assinalam que não existe pensamento estratégico regional: se houvesse, não seria necessário alertar sobre a sua ausência.
Por outro lado, reflete a convicção de que o destino do Brasil é indissociável do da América do Sul.
Lula está em boa posição para defender a primeira afirmação, mas os fatos desmentem a segunda. Que falta pensamento estratégico, falta; mas os países da região não emergirão ou naufragarão em bloco. Pelo contrário, esta década testemunha uma novidade histórica: pela primeira vez em meio século, os caminhos se bifurcam. É preciso escolher.
Desde há cinquenta anos, a América do Sul move-se quase que em uníssono. A década de 1970 se caracterizou pelo retrocesso democrático (ditaduras na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai) e choques petrolíferos que afetaram cada país em função dos seus recursos: a Venezuela se beneficiou, mas a Argentina e o Chile sofreram e o milagre brasileiro acabou. Os anos 1980 trouxeram a recuperação coletiva da democracia e, ao mesmo tempo, ficaram conhecidos como "a década perdida" por causa da crise da dívida. Embora com um viés populista, nos anos 1990 a democracia resistiu em todos os países (exceto no Peru), e também em todos os países o neoliberalismo dominou as políticas econômicas. Como reação ao ajuste e consequente desemprego, na primeira década do século XXI houve uma guinada à esquerda: a onda cor de rosa varreu o continente e a direita ficou reduzida a enclaves como a Colômbia. A novidade chegou na década atual: os países sulamericanos, lenta mas consistentemente, começam a navegar em distintas direções. A Unasul, uma invenção brasileira de tenra idade, dilui- se dentro de uma América Latina maior. E a responsabilidade não é do culpado tradicional, os Estados Unidos, mas da potência que tende a substituí-lo: a China. A mudança de hegemonia esconde uma constante: o país que ordena a região continua sendo externo a ela.
Hoje, os que escolheram integrar-se ao mundo por meio do livre comércio crescem mais do que o resto. A Aliança do Pacífico, que reintroduz o México como membro da região ao lado do Chile, da Colômbia e do Peru, é a sensação do momento. Defronte à Aliança está a alternativa bolivariana encarnada pela Alba, que ostenta um pendor protecionista e cujo país-líder está afundando. O futuro político da Venezuela é incerto, mas o seu futuro econômico é tétrico. A Argentina, mesmo não pertencendo a nenhum dos dois blocos, se parece cada vez mais com o segundo. O terceiro grupo é o Brasil sozinho, espremido por um coração protecionista e um cérebro "aberturista". O seu desempenho econômico tem sido medíocre e, em consequência, quase nem pode consigo mesmo. O gigante carece da capacidade para intervir na vizinhança sob o risco de desmascarar a sua impotência e, por isso, limita- se a exercer uma suave e fraca influência. Mas o colapso iminente da Argentina e da Venezuela ameaça arrastá-lo e o debate interno se aquece: se o Brasil não pode resgatar os vizinhos, será que deve acompanhá-los? A resposta é óbvia e opções começam a ser estudadas. Uma delas é que o Mercosul imite a Comunidade Andina e, mantendo a ficção da integração, permita seus membros assinar tratados comerciais com terceiros países.
É verdade que a situação da Argentina ainda não é tão grave como a da Venezuela: ambas gozam de governos ruins, mas apenas Caracas sofre a maldição dos recursos. Noutras palavras, a crise argentina é autoinfligida e reversível. Porém, confiar na reversão é um risco que o Brasil não precisa correr. E, se o Brasil decidisse seguir em frente, aos argentinos apenas restaria o consolo de levantar a Copa no Maracanã.
Sem dúvidas, entre vencer o Mundial ou conceber um pensamento estratégico, muitos argentinos elegeriam a primeira opção. A eles, o seu governo os representa bem. Será que o brasileiro também?
Nenhum comentário:
Postar um comentário