O GLOBO - 25/03
Aparentemente, o título deste artigo não faria nenhum sentido, considerando a época em que vivemos, na qual a pesquisa científica goza de uma ampla liberdade, garantida por universidades e institutos de pesquisa. Vai longe o tempo em que Giordano Bruno e Galileu foram condenados à morte, no caso do primeiro, com requintes da fogueira pública.
No entanto, a liberdade que goza a pesquisa científica vem tendo um contraponto na utilização pelo Estado dos produtos dessa mesma pesquisa. Isto é particularmente visível na utilização da ciência por políticas públicas de saúde, como se a certeza do conhecimento devesse se traduzir por um controle “científico” do comportamento humano. Resultados de pesquisas ou, muitas vezes, meras hipóteses não verificadas, são utilizados enquanto instrumentos de ações governamentais, como se assim estivessem justificados.
Tais ações públicas estão particularmente presentes nas políticas conduzidas contra alimentos gordurosos, bebidas açucaradas, bebidas alcoólicas ou cultivo e consumo de tabaco. Governos se arrogam direitos de intervenção na vida dos cidadãos, supostamente amparados no conhecimento científico. A justificação da restrição das liberdades não seria, então, arbitrária, mas científica. A dominação mudou de nome.
É próprio do progresso científico que os seus resultados sejam tornados públicos, vindo a balizar, no caso, a vida das pessoas, se elas optarem por seguir esse conhecimento adquirido. Se elas optarem, pois não se trata, ou não deveria se tratar, de uma obrigação imposta pelo Estado.
A diferença é de monta. Uma coisa é as pessoas, de posse de certos conhecimentos, optarem por não consumir um determinado produto por considerá-lo prejudicial à sua saúde. Nesse sentido, seria uma função do Estado informar aos cidadãos sobre malefícios reais ou prováveis à saúde das pessoas pelo consumo desses produtos.
Outra muito diferente é o Estado impor determinadas condutas restritivas da liberdade de escolha em nome de um conhecimento científico, apropriado pelo governo com vistas a seus fins específicos. Os cidadãos seriam despojados de sua liberdade de escolha.
Consequentemente, estaríamos diante de algo extremamente perigoso, a saber, a administração da vida. Pior ainda, a administração “científica” da vida. Cidadãos tutelados são cidadãos administrados, incapazes de discernir por si mesmos o que é “bom” para eles.
A pior administração é aquela que se diz “verdadeira”, “científica”, como se coubesse ao Estado optar no lugar dos cidadãos. Cidadãos administrados cientificamente tendem a se tornar servos do Estado. A eles é reservado um lugar específico, o de serem destituídos do conhecimento “verdadeiro”, esse que lhes é imposto à sua revelia.
A comunidade científica, na medida em que avança no terreno do político, começa a abandonar o seu terreno próprio, vindo a se tornar uma parte do problema, em vez de poder ser um elemento de sua solução. No momento em que entra na seara da política, ela corre o risco de colocar o seu próprio trabalho sub judice.
Melhor fariam os cientistas em avançar em suas pesquisas, mostrando, por exemplo, os elementos e produtos eventualmente prejudiciais à saúde dos indivíduos. Não lhes compete uma conduta de “cruzados” pelo controle “científico” dos cidadãos. Cidadãos devem ser informados, não tutelados. A sua liberdade de escolha deve ser, antes de tudo, preservada, tratando-se de um direito fundamental do ser humano.
A ideia de que caberia ao Estado simplesmente administrar a vida dos cidadãos segundo critérios “verdadeiros” não é nova, tendo produzido historicamente resultados catastróficos. Está amparada em uma concepção segundo a qual o Estado, graças à sua “sapiência”, sabe aquilo que é melhor para os cidadãos, que não têm o alcance desse discernimento.
Em sua forma extrema, ela foi concebida e realizada na extinta União Soviética, que sucumbiu, aliás, de seu excesso de “verdade” e de “conhecimento”. Bukharin, dileto discípulo de Lênin e destacado teórico bolchevique, chegou a escrever que em um Estado de uma sociedade sem classes, logo o Estado “bom” e “verdadeiro”, sua função essencial seria somente “administrar” a sociedade e os cidadãos.
Tal administração seria, então, conduzida por burocratas “sapientes”, “científicos”, convenientemente doutrinados, que saberiam impor aos cidadãos o que seria melhor para eles. Inclusive não somente a contragosto, mas pelo uso da força e da imposição se necessário.
O direito a ser obeso é um direito fundamental, se assim a pessoa optar. Não se trata de impor aos que estão acima do peso considerado normal uma determinada conduta, que termina, ademais, atingindo a todos os cidadãos. Em nome da suposta saúde dos obesos, todos os cidadãos, magros ou não, seriam obrigados a não mais consumirem certos produtos.
O direito a beber, mesmo à embriaguez, se ela não perturbar o próximo, é também um direito fundamental, o exercício que qualquer cidadão faz do seu gosto, sem nenhuma restrição. Cabe evidentemente ao Estado informar aos cidadãos sobre os malefícios do seu consumo excessivo.
O direito a fumar — assim como a produção de tabaco é um direito proveniente da livre iniciativa econômica, garantida, aliás, pela Constituição Federal — é igualmente um direito fundamental. Proveniente que é da liberdade de escolha, pode ou não ser exercido pelos cidadãos que prazer encontram em sua utilização. Evidentemente, fumantes não devem importunar o próximo, pois violariam a liberdade deste.
A fogueira, simbolicamente falando, está voltando em algo que está se tornando uma espécie de guerra contra alimentos gordurosos, bebidas alcoólicas, refrigerantes e tabaco. São os novos bodes expiatórios dos que temem a liberdade de escolha. Não nos enganemos: através desses produtos e suas proibições são as liberdades individuais e de escolha que são visadas.
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