Valor Econômico - 21/03
A confiabilidade no suprimento de energia é componente essencial das economias industriais. Incertezas quanto à capacidade de o sistema elétrico atender o consumo de energia paralisam decisões de investimentos que propiciam o crescimento econômico. A brutal queda no ritmo de crescimento (3%) no início da década passada, provocada pelo racionamento de energia, nos ensinou de forma dramática essa realidade. Para evitar nova situação como essa, o governo adotou medidas operacionais (garantia de lastro para as centrais térmicas), introduziu incentivos para o investimento na expansão do sistema (leilões para fornecimento de longo prazo com preços indexados) e criou novas instâncias institucionais para monitorar a situação do suprimento elétrico (Comitê de Monitoramento do Sistema Elétrico).
Passados alguns anos, a realidade indica que essas medidas não foram suficientes para garantir a confiabilidade no sistema. As dúvidas quanto à capacidade de o sistema elétrico suprir a demanda de energia ressurgem sempre que os níveis dos reservatórios ficam baixos e a pluviometria mostra-se desfavorável, como ocorre atualmente. As autoridades insistem em afirmar que essas dúvidas são infundadas. Elas confiam que as chuvas de verão farão os reservatórios voltarem a patamares adequados, afastando o risco de racionamento. Porém, a série sucessiva de apagões regionais dos últimos meses é sintoma claro de que a sistemática de gestão da confiabilidade do sistema elétrico necessita profunda e urgente revisão. Aliás, o próprio governo indica essa necessidade ao anunciar sua intenção de sinalizar o risco de esgotamento dos reservatórios com bandeiras que ditarão adicionais tarifários para convocar os consumidores a reduzirem seu consumo de energia.
É muito preocupante a informação veiculada na mídia da existência de erro "oculto" (sic) nos modelos computacionais utilizados na gestão da confiabilidade do sistema elétrico. Erros nesses modelos corrompem a precificação da energia no mercado livre, componente importante dos custos da base da cadeia produtiva. Essa credibilidade é crucial, particularmente no momento atual, quando o governo procura estimular o consumo de energia (e consequentemente o crescimento econômico), reduzindo tarifas elétricas para o parque produtivo.
A sistemática de gestão da confiabilidade do sistema elétrico em uso foi herdada do período em que o sistema elétrico da região Sudeste operava isolado, contava com vastos reservatórios hidrelétricos e o crescimento era ditado pela economia dessa região. Os reservatórios hidrelétricos eram, então, capazes de oferecer horizonte plurianual para a confiabilidade do suprimento da região. Nessa situação, o sistema era operado com o objetivo de reduzir custos operacionais, minimizando o uso de combustíveis nas centrais termelétricas. Dificuldades no suprimento elétrico de outras regiões não afetavam o suprimento elétrico da região Sudeste, tampouco a precificação da energia nessa região.
A situação atual do sistema elétrico é radicalmente distinta da descrita no parágrafo anterior. A interligação dos sistemas elétricos regionais e a inexistência de condições ambientais para a construção de novos reservatórios tornaram os reservatórios hidrelétricos do Sudeste o eixo central da confiabilidade do suprimento de todas as regiões do país. Inexorável e paulatinamente, a capacidade de esses reservatórios garantirem a confiabilidade do suprimento elétrico vem declinando.
O núcleo gerador das dúvidas quanto à confiabilidade do suprimento elétrico reside nesse declínio e, infelizmente, a regulamentação atual do mercado elétrico oferece incentivos perversos para que ele seja acentuado. Ela autoriza as centrais a comercializarem uma quantidade pré-especificada de energia, independentemente da quantidade de energia que elas efetivamente geram (garantia física!).
A responsabilidade de garantir que o conjunto de centrais produza a somatória das garantias físicas dos geradores para atender a demanda dos consumidores é retirada das centrais e repassada para o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
Dessa forma, os geradores são estimulados a postergar investimentos necessários para evitar a redução de sua capacidade de geração, ditados por mudanças nas condições operacionais das centrais, tais como o assoreamento de reservatório ou a deterioração de equipamentos. Ela também induz a negligência com a redução na capacidade de geração de energia das centrais hidrelétricas, decorrentes de mudanças no regime hidrológico e da ampliação do uso da água para atender outras necessidades da sociedade. Esses problemas são especialmente relevantes no suprimento energético da região Nordeste, onde a escassez de água é problema recorrente, de dimensões acentuadas.
A recuperação da confiabilidade no suprimento elétrico exige reconhecer que a sistemática de gestão dos reservatórios herdada do século passado é inadequada para o Brasil atual. O papel das centrais térmicas na confiabilidade do suprimento elétrico será crescente, tornando pouco significativos os ganhos econômicos de curto prazo com a redução no uso de combustíveis. Por outro lado, as perdas econômicas de longo prazo provocadas pelo risco de racionamento serão crescentes, com a redução progressiva do horizonte de esgotamento dos reservatórios hidrelétricos. A renovação das concessões oferece oportunidade única para o governo revisar a sistemática de gestão dos reservatórios, eliminado a garantia física para a comercialização de energia das centrais elétricas.
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