domingo, fevereiro 17, 2013

O hambúrguer das cavalgaduras - CARLOS ALBERTO DÓRIA

O ESTADO DE S. PAULO - 17/02

A alimentação humana é sempre assunto contraditório, pois os homens não possuem valores uniformes em relação ao que comem. Dessa perspectiva, o "escândalo" sobre o consumo involuntário de carne de cavalo pelos europeus possui ao menos dois aspectos dignos de nota. O primeiro diz respeito à credibilidade dos produtos da indústria. Por que deveríamos acreditar cegamente nela se, está provado, nos engana? O segundo remete ao arranhão que provocou no padrão cultural de carne que o Ocidente consome. Boi é para comer; cavalo, para esportes.

A primeira grande suspeição em relação à carne industrial surgiu por ocasião da chamada "crise da vaca louca", em 1986, na Inglaterra. Apesar de a doença ter sido detectada entre carneiros nos EUA, em 1947, ela só foi verificada em humanos na Nova Guiné, em 1955, valendo um Nobel de medicina a Daniel Gajdusek, em 1976, por descobrir a causa da encefalopatia no consumo de cérebros e vísceras, conforme ritos funerários canibais. Ora, como não nos consideramos canibais, o problema parecia distante. Apesar do conhecimento do que produzia a encefalopatia, a grande indústria da carne não renunciou a cérebros e vísceras na ração bovina, obrigando-os a um canibalismo contrário a sua natureza herbívora. Só com a epidemia no rebanho britânico é que, em 1988, o governo proibiu a utilização de farinha animal na ração.

Mas o estrago já estava feito. A repercussão planetária de um "problema veterinário" colocava o consumidor à mercê de um risco insuportável. E até hoje, inclusive entre nós, floresce uma próspera indústria de rações que formula sem transparência a alimentação de bois, aves ou peixes - ministrando restos orgânicos de um gênero ao outro, o que, hipoteticamente, poderia produzir uma contaminação cruzada. Num certo sentido, como disse o antropólogo Lévi-Strauss, somos, sim, todos canibais; ao menos se considerarmos que, nos tempos bíblicos, homens e animais eram irmanados e só depois da Arca de Noé é que começamos a comer nossos semelhantes. E, se nos comemos uns aos outros, é claro que um só destino se desenha no horizonte. Afinal, como diz o mantra dos gourmets, "somos o que comemos".

A importância da vaca louca foi a transcendência que a crise adquiriu. A partir daquela epidemia houve enorme retração do consumo de carne e surgiram ONGs a exigir dos governos perfeita transparência nas transformações ocorridas na cadeia que liga o campo à gôndola dos supermercados. O vegetarianismo cresceu como ideologia alimentar e se multiplicaram as certificações de produções "bio", "naturais", ou "orgânicos". A rastreabilidade da produção tornou-se um novo dogma do comércio.

Agora, a descoberta da carne de cavalo em produtos da indústria mostra a quebra de confiança nos padrões atuais de rastreabilidade, construídos a duras penas. Os governos, que em última instância são seus garantidores, foram postos em xeque e será necessário jogar às feras alguns expoentes da indústria, como o Food Group ABP, cujos tentáculos na Irlanda iniciaram essa nova crise. Além disso, imporão aos produtos o teste de DNA, essa verdade moderna vulgarizada por séries como CSI, para desvendar crimes.

As razões para esses desvios da norma desejada são sempre as margens de lucro que propiciam num mercado duramente concorrencial. Inócuas etiquetas quantitativas nutricionais nos revelam muito pouco do que atualmente interessa ao consumidor: a qualidade do produto. E o que temos de fato dentro de uma mortadela, uma salsicha ou um hambúrguer? Tínhamos a confiança cega de que a indústria zelava por nós. Entende-se, portanto, por que a sociedade reage utilizando o termo "falsificação", como se descobrisse uma traição imperdoável, urdida nas altas rodas das finanças e gabinetes governamentais.

O próprio juízo sobre a indústria não escapa às vicissitudes históricas. Quando, em 1869, o químico francês Mège-Mouriès aplicou a saponificação para produzir manteiga diretamente da gordura dos bovinos - a prosaica margarina - o agro francês se levantou em pé de guerra taxando a descoberta de "falsificação". A manteiga "falsa" levou anos para encontrar seu lugar no mercado, num percurso cheio de compromissos que incluiu a produção da beurrine - composto misto de manteiga e margarina. Hoje se sabe, a lei das fraudes e falsificações francesa, de 1851, veio à luz justamente para barrar o avanço da indústria sobre a produção rural tradicional. E essa "beurrine" moderna, mix de carne bovina e equina, não está muito distante desse quadro de competição entre produtores, sempre tentados a adotar soluções mais baratas, moendo cavalos imprestáveis.

No entanto, numa dimensão mais profunda, não estamos dispostos a conceder que qualquer carne seja admissível na nossa dieta. Apesar de se ver carne de cavalo à venda em açougues franceses e italianos, não são todos os consumidores que consideram esse produto comestível. Assim, o "direito de escolha" também foi violado de maneira grave.

Nos repugna que certos povos possam comer cães - esses pets tão maravilhosos que vêm num longo processo de "humanização" no Ocidente (que começa com a designação "he" ou "she" para seres que, antes, eram "it") até culminar na "Declaração Universal dos Direitos dos Animais" (Unesco, 1978), que praticamente os considera membros da família humana. A velha noção de canibalismo perturba nosso espírito quando descobrimos um animal de espécie próxima (doméstica) ou distante (selvagem) sendo comida. Proíbe-se a caça e, de quebra, exige-se tratamento humanitário para os animas de abate; não é à toa que os antigos matadouros foram rebatizados como frigoríficos, substituindo a consciência do sangue e do sacrifício pela imagem da rigidez cadavérica.

Por outro lado, num estudo desbravador, o historiador norte-americano Warren Belasco mostra como, no Ocidente, comer carne bovina se tornou sinônimo de "civilizado". Apesar da diferença de dietas dos povos, mesmo a FAO, em seus diagnósticos sobre a fome no mundo, apontava déficits graves de nutrição nas civilizações milenares da China e da Índia pelo baixo consumo de carne bovina. Mas sem esse mito ocidental do século 19 não compreenderíamos a expansão do faroeste norte-americano nem a ocupação dos pampas argentinos. E foi a invenção dos navios frigoríficos que permitiu, a partir de 1880, à frozen meat cruzar o oceano em direção às mesas europeias.

Ora, todo traço alimentar serve para identificar os povos e estabelecer suas fronteiras culturais. A identidade repousa na cor da pele, na língua, nos hábitos alimentares. Somos "comedores de bois", não de cavalos, nem de formigas ou porquinhos-da-índia. Além disso, os cavalos trazem à memória outros fatos históricos. Durante muito tempo foram signos de distinção da aristocracia; em guerras não tão distantes, aqueles que admiravam essa nobreza do cavalo foram obrigados a comê-los para não morrer de fome. A carga cultural do cavalo reforça a primazia da carne de boi à mesa. Nós, brasileiros, comemos boi sob a forma de "bife a cavalo", numa alegoria culinária que nos lembra de que esse animal é para ser montado, nem que seja por um reles ovo frito.

A chamada "angústia alimentar moderna" - a certeza de que não sabemos o que comemos - aviva-se agora no cotidiano europeu por conta da "fraude" na composição de hambúrgueres, kebabs e lasanhas. Por enquanto, nada que não seja relativamente comestível, nada que esteja contaminado, mas a abertura da "caixa-preta" certamente trará novas revelações. Enquanto isso, a Europa se escandaliza com a clara ruptura de um padrão alimentar, histórico e consagrado, por uma sórdida estratégia de capitalistas gananciosos.

Que defesa pode haver contra isso? Seguramente um impulso grande em direção à comida tradicional de "terroir", ao "locavorismo" e outras propostas que aproximam o consumidor do universo dos produtores. Uma bela utopia que esteve à espera da confirmação de que a indústria, infelizmente, não merece a confiança cega que nela depositamos há séculos, quando nos prometia um futuro radioso. Uma ruralidade mais próxima - ainda que meramente alimentar - poderá avançar nos interstícios de um mundo que se quer pós-moderno.

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