domingo, janeiro 06, 2013

Pipoquices - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 06/01


Certeiro no uso das palavras ao compor seus versos, meu amigo Pipoca (preservemos sua identidade por detrás do apelido de infância, pois é homem recatado) se atrapalha todo quando vai manejá-las na conversação. Quer dizer uma coisa e sai outra. Para você ter uma ideia: ao me abraçar, emocionado, no dia do meu casamento, limitou-se a um monossílabo carregado de involuntário mau agouro:

- Tchau!

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Em Paris, numa roda de jovens casais, o Pipoca, revoltado, chegou contando a desfeita de que fora vítima minutos antes, da parte de um nativo de maus bofes, sem que tivesse podido responder, já que além de tímido lhe falta domínio da língua francesa. Não, sejamos justos: fala francês fluentemente (ele vai adorar a acidental aliteração), só que ninguém entende. Naquele episódio, nem isso, pois a grosseria congelou seu rarefeito vocabulário. Pipoca só foi estourar ali entre os amigos. Suprassumo da delicadeza, pediu: "Fechem os olhos, meninas!" - e, no português mais cru, entornou o caminhão de palavrões que em vernáculo não pudera endereçar ao agressor.

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Em outra roda, majoritariamente francesa, o poeta aventurou-se a contar o que acabara de presenciar no metrô parisiense: um velho, surtado, baixou as calças e se pôs a chacoalhar os balangandãs. Como ao narrador sobrasse decoro e faltasse munição verbal, ninguém entendeu o que se passara. Tentou esclarecer, sem perder a finura jamais: o camarada tinha mostrado tous ses documents, sim, seus documentos, ses papiers - e aí a coisa se complicou de vez: seria como dizer, no Brasil, que o peladão mostrou o RG, o CPF, a carteira de motorista... Só a presença de um compatriota bilíngue pôde conferir sentido à narrativa pipocal.

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Na cidade onde morava, no sul da França, meteu-se ele um dia a preparar para os amigos, de variadas nacionalidades, o que anunciou, aliás num verso alexandrino, como sendo "a joia negra da cozinha brasileira". Seus dotes culinários, a bem da verdade, iam pouco além dos ovos mexidos, o que de forma alguma lhe pareceu constituir problema. Problema, esse sim, foi achar os pertences da feijoada, a começar pelo feijão preto. Vá lá, deu de ombros, e, renunciando à negritude da joia, mandou embrulhar os grãos graúdos e branquelos docassoulet. Paio também não havia, nem lombo defumado, muito menos carne seca (causou espécie ao pedir "viande sèche"). Couve e pimenta malagueta, então...

Você pode imaginar o desastre que foi a pálida feijoada do Pipoca, a partir do instante em que ele irrompeu no recinto com um formidando e fumarento caldeirão, evocador das tragicômicas bodas de Dom Ratão. Servidos os pratos - a que não faltou, como sucedâneo da malagueta, uma pimenta vietnamita só comparável, em poder de fogo, ao napalm que os americanos despejavam sobre os vietcongues -, baixou entre os comensais um silêncio ainda mais espesso que o conteúdo do caldeirão. Na tentativa de deixá-lo à vontade, a dona da casa teve a infelicidade de louvar a feïjoadá brésilienne do Pipoca, o que, por cima do orgulho de chef, lhe feriu brios nacionalistas:

- Não, madame, isso aqui não tem nada a ver, lá é totalmente diferente - tartamudeou ele, acrescentando ao desastre o ingrediente que faltava.

***

Em outra ocasião, morando ainda na casa dos pais, foi despertado com a notícia, ao telefone, da morte de um amigo da família, e por pouco não ficou sem palavras. Antes tivesse ficado, pois a única que lhe veio aos lábios foi:

- Oba!

***

E houve também o dia em que, num encontro casual, ele soube da morte do pai de um amigo.

- Não me diga! Eu nem sabia que ele estava doente!

- Não estava - contou o outro -, mas veio uma pneumonia e...

- Ah - respirou o Pipoca -, ainda bem que não foi nada grave!

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