domingo, janeiro 06, 2013

Impressões de viagem - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 06/01


Espero rever Vavá Major, para novas lições de como não fazer nada que dê labuta


Nesta época do ano em que todo mundo viaja — inclusive eu, que estou saindo de férias — é bem possível que o distinto amigo e a cativante leitora estejam agora num aeroporto. Não menciono rodoviárias, ônibus ou carros por falta de experiência, pois as estradas me aterrorizam muito mais que os aviões, no que, aliás, acredito que tenho razão, diante da carnificina que costuma deflagrar-se nelas, nos períodos de maior movimento. Sinto grande inveja de quem lê em aeroportos. A única leitura que consigo fazer é a dos monitores que mostram informações e não posso me concentrar em nada, porque tenho certeza de que vão mudar a hora do embarque, depois o portão, depois ambos e, em seguida, vão cancelar o voo.

Já passei por tudo isso e, na convicção de que uma boa paranoiazinha tem seu lugar, continuo um praticante radical de atenção redobrada em aeroportos. Admito que foi um caso extremo, mas, faz muitos anos, no aeroporto de Frankfurt, cheguei a entrar na fila de embarque de um voo para um país oriental cujo nome é mais prudente não lembrar. Provavelmente não me deixariam viajar, mas também não teria sido impossível que eu embarcasse e, ao chegar sem visto, fosse condenado a vinte chibatadas e deportado de volta num compartimento de carga, ou qualquer coisa assim, como a gente sempre lê nos jornais. Outra vez, em Atlanta, me tiraram de dentro daquele tubo por onde se embarca no avião, me revistaram todo e botaram um cachorro para me cheirar de maneira injuriosa.

Volta e meia, assistimos a programas de televisão em que os direitos dos passageiros são enfatizados e nos conclamam a exercê-los sempre que julgarmos necessário. Que não restem dúvidas, temos direito a isso e aquilo, devemos exigir, reclamar, não sei o quê. Claro que é dessas coisas curiosas que acontecem bastante por aqui, ou seja, a gente ver na televisão uma realidade bastante diversa da que nos circunda. Para quem está enfrentando um pepino em aeroporto, o voo cancelado, a turba enfurecida, o “sistema” fora do ar, a mala extraviada para Sri Lanka, as escadas rolantes quebradas, os corredores intermináveis e demais causadores de apoplexia e crises histéricas, conhecer esses direitos é análogo à situação de um acidentado esperando atendimento numa maca de corredor durante horas, cercado por cartazes nas paredes que proclamam como é esplêndido o Sistema Único de Saúde.

A única diferença entre o que acontece hoje e acontecia antes é que os passageiros agora são chamados de “clientes”. É uma inovação intrigante. Pode dever-se a uma instrução normativa de um dos muitos órgãos que entre nós baixam instruções normativas com finalidades ignoradas, nunca se sabe. Mas o que quer que seja, até hoje me sinto meio esquisito, ao entrar numa fila de clientes, acho uma coisa meio hospitalar. E, dentro do avião, os tempos também são outros. Talvez haja espaço para ler, pelo menos antes que o cliente da poltrona à frente a recline e esmague os joelhos do cliente de trás. Num voo da Avianca em que me enfiaram outro dia, a cadeira tinha uma espécie de calombo no encosto, aproximadamente à altura da nuca do padecente, que me lembrou um garrote vil e deve ser criação de um gênio do desenho industrial. Pelo menos no meu caso, o resultado era forçar o queixo a encostar no peito, mais ou menos na postura dos cadetes de West Point que a gente vê nos filmes americanos. Fiz uma pequena queixa à comissária, ela veio até mim, pegou no calombo como se quisesse sacudi-lo, mostrou que ele era imóvel, me fitou e, por um segundo, achei que ia me dar uma cotovelada no olho, mas deve ter percebido que eu uso óculos e desistiu.

Podia ser pior, bastante pior. Aliás, piorará, porque o Brasil nunca cessa de juntar-se ao que há de mais moderno. Li sobre uns pioneiros europeus que vão inaugurar, ou já inauguraram, voos em que o cliente não se senta, mas fica mais ou menos em pé, amarrado a um encosto que lembra uma tábua de passar inclinada. Dá para empacotar muito mais gente, barateando o transporte. Eles acham que é o futuro dos voos de curta duração. Outras medidas de economia incluem cobrar pelo uso do banheiro, caso em que espero, em benefício dos companheiros de cabine dos apertados sem dinheiro, que sejam concedidos créditos de emergência, a juros razoáveis.

E, além de comida e bebida grátis, faltam aos voos de hoje certas amenidades, que já começam a ser esquecidas. Os mais veteranos haverão de lembrar, talvez com alguma saudade, de um personagem aéreo que nunca mais se viu, nem mais se verá. Era o camarada que, assim que os sinais de apertar o cinto e não fumar se apagavam, levantava-se, acendia um cigarro e ia conversar no corredor, às vezes sentando no braço da poltrona do interlocutor. Tinha sempre grande familiaridade com todo tipo de avião e comentava detalhes técnicos, às vezes descrevendo em pormenores o funcionamento de ailerons, flaps e lemes. Muito frequentemente, se o avião começava a balançar, ele sorria amarelo, comentava que “isso é muito comum” e voltava a amarrar-se no assento, um pouco pálido.

Apesar dessas e doutras, espero haver resistido à viagem que neste domingo já terei feito. Vou rever minha terra e amigos de infância e me inteirar das novidades. Espero rever também Vavá Major, para novas lições de como não fazer nada que dê labuta. E prestigiarei a instalação solene da mais recente iniciativa de Zecamunista — a Cococó, que só por acaso soa como cantiga de galinha, mas é a sigla da Cooperativa dos Cornos Convencidos, entidade dedicada a prestar assistência aos membros dessa sofrida classe, inclusive cuidando de suas deles senhoras. No dia 17 de fevereiro, Deus permitindo, eu volto.

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