O GLOBO - 15/01
O tratamento compulsório do viciado em crack ou qualquer outra droga não pode ser a primeira alternativa na abordagem do usuário pelo poder público
Em grandes cidades, o problema começou em São Paulo, com chegada às ruas de uma pedra barata, ao alcance de pivetes, sem-teto, lúmpens em geral. Fumado, este refugo do processo de destilação da cocaína é capaz de produzir alucinações quase instantâneas. Os viciados passaram a se concentrar numa área do chamado “centro velho” paulistano, logo batizada de Cracolândia.
Correu a história que o crack não chegava ao Rio porque o tráfico carioca impedia, temeroso do efeito devastador da pedra sobre os viciados. Não queria matar a clientela, alegava-se. Lenda. A droga também desembarcou nas ruas cariocas, e o vício ficou bastante exposto com o avanço do programa de pacificação de favelas. Sem o abrigo de traficantes, os “craqueiros” ou “cracudos” se espalham na proximidade de favelas, as principais delas próximas à Avenida Brasil, via de tráfego pesado, importante acesso à cidade.
O crack virou problema nacional. Entrou, também, em cidades menores e invadiu, por inevitável, a agenda de discussões sobre como deve ser abordada a questão do drogado. Em certo sentido, reproduz-se no crack o debate da descriminalização do consumo. Mas, nesta droga, o ponto é crítico, pois ela tem alto poder de destruição — dessocializa a pessoa em maior velocidade que a cocaína e outras substâncias tóxicas. Cabe, portanto, ao Estado proteger a integridade do viciado, como deve fazê-lo com todo o cidadão. Aqui começa a discórdia. O governo do estado de São Paulo passará, nos próximos dias, a praticar a internação compulsória de usuários de crack, política seguida pela prefeitura do Rio. Com bons resultados, escreveu em artigo publicado no GLOBO o secretário municipal de Governo, Rodrigo Bethlem.
Críticas, porém, não faltam. O próprio prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, se colocou contrário ao projeto do governador Geraldo Alkmin, porque especialistas garantem que o êxito efetivo no tratamento coercitivo é ínfimo. Os técnicos defendem a abordagem pelo convencimento do viciado a se tratar como a melhor alternativa.
Falta, de fato, bom senso em algumas operações. No Rio, começa perigosamente a entrar na rotina da cidade a cena de grupos de viciados em correria pela Avenida Brasil, para escapar de operações contra a droga. Na semana passada, um menino de 10 anos morreu, atropelado por um caminhão. Há meses, em São Paulo, uma blitz mal planejada e executada esvaziou a Cracolândia, mas espalhou os viciados pela cidade.
É indiscutível que o consumo de crack e outras drogas, além de certos limites, tira qualquer discernimento do usuário. Cabe, nesses casos, ao Estado agir para preservar a vida do viciado. Mas a internação compulsória não pode ser primeira opção de abordagem. Precisa ser a última.
O programa federal “Crack, é possível vencer”, a que metade dos estados não aderiu, pode ser um instrumento de indução a uma política nacional, apoiada no SUS, de enfrentamento desta espécie de epidemia em bases mais razoáveis.
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