FOLHA DE SP - 12/01
RIO DE JANEIRO - Numa fase de muitas idas a trabalho a Nova York, Londres e Paris, nos anos 80 e 90, nunca me acostumei com as pessoas falando sozinhas que via pelas ruas dessas cidades. Não eram mendigos ou bebuns no último furo, o que poderia denotar uma avançada degradação mental -mas homens e mulheres de terno ou tailleur, graves, sóbrios, com pinta de altos executivos. Falavam em tom de voz mediano e regular, como se estivessem decifrando um conceito fenomenológico ou calculando o valor de pi.
Como não via isso no Brasil, exceto nos miseráveis de praxe, deduzi que falar sozinho era uma característica da civilização. Devia ser coisa de gente cujo bisavô tinha sido amigo de Lincoln, Lewis Carroll ou Rimbaud e, desde então, habituara-se a conviver com filósofos, astrônomos e primeiros-ministros dizendo coisas importantes ao seu redor -e era com elas que "dialogava" enquanto atravessava a rua.
Dialogava mesmo, porque eram falas que sugeriam pergunta e resposta, acompanhadas de gestos com as mãos e a cabeça. Eu me perguntava se aquelas pessoas não estariam ouvindo de verdade as vozes que os faziam falar sozinhos.
Bem, passaram-se muitos anos e, de algum tempo para cá, tenho cruzado nas ruas de RJ e SP com homens e mulheres graves, sóbrios, com pinta de altos executivos -e também falando sozinhos. Oba, chegamos à civilização -pensei. Na minha fantasia, imaginei-os descendentes de conselheiros do Segundo Reinado.
Só que, ao me aproximar de alguns, pude escutar o que falavam. Um discutia o Flamengo da véspera; outra contava o que acabara de ouvir na Ana Maria Braga etc. Todos usavam um Bluetooth, o minifone invisível que se acopla à orelha e faz parecer que o sujeito está falando sozinho. Mas não, ninguém estava falando sozinho, e muito menos calculando o valor de pi.
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