O ESTADÃO - 10/11
Adjetivemos a polivalente Lydia Davis. Ela foi casada com o conhecido romancista norte-americano Paul Auster. Tiveram filhos. Traduziu para a língua inglesa obras de Gustave Flaubert, Marcel Proust, Maurice Blanchot e Michel Foucault. O prefácio dela para a tradução que fez de Madame Bovary foi republicado pela Companhia das Letras à entrada da recente edição do romance francês e é notável por ser preciso e conciso. Recomendo-o.
Saltemos para o lado substantivo da polivalência. Nascida em 1947, Lydia é, no campo do conto (short-story), a figura mais destacada de sua geração. Para considerá-la como tal, o leitor deve desconstruir a tradição do gênero conto que é garantida, na língua inglesa, pelo adjetivo "short". Deve só prestigiar o substantivo "story", que se lhe segue. Ela já publicou quatro coleções, atualmente reunidas em The Collected Stories of Lydia Davis (Farrar, Straus and Giroux, 2010).
Ao pé da letra, Lydia não escreve "short-stories", escreve "stories". Não escreve contos nem poemas em prosa. Não escreve textos, abomina a palavra; tampouco escreve fábulas, teme o perigo de o leitor sair em busca da moral. Escreve estórias, daí o caráter excêntrico da sua produção literária. Afirma que a etiqueta "conto" perdeu o sentido. Significa um gênero de texto literário a que nos acostumamos ao crescer. Explica-se: cresci admirando conto definido por personagens, diálogo e cenário; cresci admirando Chekhov, Flannery O’Connor e Guy de Maupassant.
Hoje, continua ela, não estou mais interessada em criar um relato composto de cenas que retratam personagens dialogando em dado ambiente. Tais cenas lhe parecem artificiais, embora admire alguns prosadores que deixam a artificialidade criar cenas que ela julga artificiais. Sua poética não é um prêt-à-porter. É dela. Em contexto de mistério, suas estórias narram até à exaustão um acontecimento isolado. Imaginem uma bailarina. Traz a perfeita técnica da dança na ponta dos pés. Esqueceu a coreografia. Quer recuperá-la com classe e dignidade. Faz rodopios endiabrados num espetáculo em que o enigma do drama agarra o espectador pela comicidade involuntária.
Seus narradores, na maioria mulheres, seriam obsessivos? São, e talvez mais que isso. Críticos os qualificam de autistas. Não procuram entusiasmar o leitor com a intenção de levá-lo a desejar apreender o cerne emotivo da trama (the emotional heart of the matter).
A estória que empresta título ao livro Samuel Johnson Está Indignado (2001) é bom exemplo. Ela se compõe de título, o mencionado na capa do livro, mais dois pontos e uma frase: "por haver tão poucas árvores na Escócia". A frase não foi inventada por Lydia; foi tirada da famosa biografia de Samuel Johnson escrita por James Boswell. A frase é dos dois; a estória, dela. E esta sugere ao leitor que a indignação de Johnson não é a que está expressa por célebre tirada, "O patriotismo é o último refúgio de um canalha", mas a que se transmite pela discrição e a visão de futuro. Transforma o rabugento autor clássico num bem-humorado indignado, favorável à melhoria do meio ambiente.
Tamanho da estória não é, pois, documento. Estilo e humor de Lydia têm a ver com a atividade de deixar a inteligência descascar a linguagem, tal como na prosa e nas peças de Samuel Beckett, seu ídolo. Samuel Johnson Está Indignado: é uma estória que não perfaz um conto; é uma frase/ pensamento do biógrafo sobre a indignação do biografado, descascada como laranja pela leitura. Um nutriente puro é dado ao leitor. A inteligência governa a criação, afirma Lydia, mas na origem da escrita, se se quiser chegar a uma boa estória, tem de haver um sentimento forte. Este - esclarece ela - pode ser uma curtição (delight) com a linguagem.
O aspecto exterior da experiência vivida também não é documento. Não é o mundo que é real, é a vida. Na condição de tradutora, Lydia habituou-se a trabalhar com livros alheios e em língua estrangeira. O fato de viver dia sim, dia não com outra língua, outra gramática e outra sensibilidade literária, somado à tarefa de ter de redigir na língua materna dentro das constrições determinadas pelas escolhas estilísticas de um Marcel Proust, por exemplo, tornaram-na hiperconsciente do que pode ser feito de original em prosa inglesa.
Numa estória, Lydia pode combinar um trecho de tradução livre com as suas digressões, ou as próprias digressões com dois ou mais textos alheios. A trama da estória nasce e respira entre as linhas da tradução de textos alheios e das digressões pessoais. O todo nunca é o factual. Aprende-se mais lendo a correspondência de um escritor que sua biografia. Das cartas escritas por Flaubert à amante, Louise Colet, ela retirou dez passagens curtas e autossuficientes. Traduziu-as livremente (ao contrário do que tinha feito com Madame Bovary) e enquadrou cada uma delas. Deu-lhes outra forma estilística, emprestando vida e atualidade à velha estória de outro.
Na última coleção de estórias, Variedades de Perturbação (2007), Lydia passou a trabalhar mais com a própria invenção. As estórias são longas ou continuam curtas. Depressão Primaveril tem duas linhas: "É uma sorte que as folhas cresçam tão depressa. Em breve, estarão escondendo minha vizinha e o bebê-chorão do filho dela".
Diário de Cape Cod é composto de dois diários de viagem que se tornam cúmplices no desejo de se escrever um ensaio. Durante as férias, a narradora retoma os passos e as anotações de um viajante estrangeiro de passagem por Cape Cod para escrever um ensaio, que se transforma noutro diário. A solidão e a hostilidade do ambiente marítimo de ontem produzem hoje tempestades novas, fatos estranhos e encontros inesperados. Alertaram os cinco sentidos do viajante e alertam os da sua leitora e ensaísta. Os diários são pulsantes e vivem em ritmo de prontidão.
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