ZERO HORA - 10/11
A moedinha número 1 da minha coleção de livros é uma edição barata e já amarelada de Morangos Mofados. Caio Fernando Abreu foi uma paixão avassaladora da minha adolescência, e esse pequeno volume de contos que ele lançou em 1982 foi o primeiro livro que eu comprei – e também o primeiro que alguém autografou para mim: “Prá Cláudia, por exemplo, 1 Beijo, Caio Fernando Abreu, 82”.
Eu com 16 anos, meu autor favorito com 34, um encontro, um olhar de cumplicidade (“ninguém te entende como eu...”), uma assinatura, uma lembrança guardada para sempre... Bom, mais ou menos.
O problema é que eu não tenho a mais remota recordação desse encontro. Onde eu pedi esse autógrafo? Quando? Estava sozinha? Disse alguma coisa terrivelmente adolescente sobre como o livro tinha mudado a minha vida ou congelei envergonhada? Que impressão eu tive do autor diante de sua versão não impressa? Zero. Zip. Nada. Não tem registro.
Há um enorme descompasso entre a memória clara e bem definida da forte impressão causada pela leitura dos livros de Caio naquela época e a eliminação sumária da lembrança do nosso primeiro e único encontro. Sou dessas pessoas que guardam melhor sensações e sentimentos fortes do que fatos e cronologias, mas gosto de pensar que nesse episódio específico meu inconsciente decidiu por conta própria que, entre o autor e a obra, ficaria com a segunda.
A experiência de ficar perto do escritor, falar com ele talvez, tornou-se menos importante do que os seus livros e teria se perdido completamente não fosse essa assinatura que está aqui na minha frente agora enquanto escrevo – exatamente 30 anos depois daquele momento que eu esqueci de lembrar para sempre.
Algumas pessoas tatuam a assinatura dos ídolos na própria pele, o que é uma forma radical de literalmente incorporar uma experiência estética marcante. Outras já nem mais pedem autógrafo, preferindo apenas a fotografia, um registro para ser compartilhado e que, de certa forma, é um laço permanente, nem que seja pelo nanossegundo do clique de um celular. (Nos últimos dias, participei de três sessões de autógrafos, em três cidades diferentes, e não seria exagero dizer que mais tirei fotos do que distribuí autógrafos – ou que pelo menos deu empate técnico. )
É sempre uma experiência muito intensa essa de duas pessoas que não se conhecem e que tentam, em poucos minutos ou segundos, recriar uma comunicação que até ali existia apenas na intimidade silenciosa da leitura. A assinatura, em geral, é apenas um pretexto, de quem escreve e de quem lê, para transportar uma ligação abstrata e “pura” para o universo concreto do toque, do olhar, da troca de impressões mútuas – ainda que superficiais e incompletas.
Todos esses detalhes se perdem com o tempo. Vão-se os sorrisos, os olhares, os abraços afetuosos, as declarações de devoção profunda e eterna. Ficam a assinatura, uma saudação cordial, e agora talvez uma foto no Facebook também. Mas tudo isso é quase nada comparado com aquele momento único em que o leitor encontrou-se – a sós e em silêncio – com a melhor versão possível de um escritor: o livro que ele escreveu.
Um comentário:
Fiquei com saudade daquele tempo em que o Caio existia "de se pegar". Em carne e osso e em poesia.Quase nos encontramos pessoalmente, por duas ou três vezes, mas não foi possível. O texto me fez refletir muito sobre a minha própria passagem. Permito-me escorar nos versos de Pascoal Motta: "Vamos, meu boi, tão sozinho/ olhar de frente esse azul / de céu que é nosso comum / até não chegar meu dia." in VER DE BOI
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