Nem a repulsa ao chavismo nem a oposição a Obama valem o sacrifício dos princípios básicos do bom jornalismo
Há mais coisas em comum entre Barack Obama e Hugo Chávez do que supõe a vã analogia. A mais óbvia: as campanhas reeleitorais deste ano. Outra: a hostilidade da mídia aos dois. Se vencer as eleições do mês que vem, o presidente americano terá outro ponto em comum com seu colega venezuelano, reeleito domingo para mais um mandato com uma vantagem de 9,5% de votos sobre o adversário, porcentual aparentemente fora do alcance do candidato democrata.
Outra convergência se daria caso Obama tivesse torcido para Chávez na corrida presidencial venezuelana, mas é de se supor que o candidato de sua preferência fosse Henrique Capriles, a despeito do apoio explícito que há dias lhe deu Chávez: "Se eu pudesse, votaria em Obama". Ainda que em nenhum momento tenha se manifestado sobre as eleições na Venezuela, Obama não sente a menor simpatia pelo líder da "revolução bolivariana".
Domingo passado, ao inaugurar um monumento a Chávez, na Califórnia, o presidente americano saudou o homenageado como "um herói que trouxe esperança para milhões de pobres lavradores". Outro era o Chávez em questão: César Chávez, histórico líder dos trabalhadores rurais latinos, nascido no Arizona, filho de imigrantes mexicanos, morto há quase 20 anos. Por ignorância ou má fé, uma horda de tuiteiros, blogueiros e mittnautas confundiu César com Hugo e despejou um dilúvio de insultos sobre Obama na internet, no rádio e na TV. Está valendo tudo para impedir que o presidente democrata disponha de mais quatro anos para recuperar o país dos oito anos de bushismo.
Tudo mesmo. Os republicanos mais cínicos e sem escrúpulos mentem, distorcem estatísticas e espalham boatos com uma desfaçatez fascista. Logo que a última taxa de desemprego no país (7,8%) foi divulgada, a brigada de pinóquios do Partido Republicano cerrou fileiras contra os dados oficiais do censo. Como esses dados contrariavam um dos dogmas da campanha de Romney ("Obama ainda não conseguiu pôr a taxa de desemprego abaixo dos 8%"), âncoras da Fox News e editores de websites de direita, em vez de festejá-los, puseram em dúvida sua idoneidade e espalharam pelos redutos menos confiáveis da mídia mais uma teoria conspiratória contra o governo e os democratas.
O ex-executivo da General Electric Jack Welch foi quem mais alto ergueu o estandarte da "manipulação dos números", e ao admitir não ter como provar sua suspeita entregou na bandeja para o gozador Jon Stewart (Daily Show) uma das leviandades mais suculentas do mês. Outro apóstolo da manipulação, Charles Payne (Fox News), assegurou que a taxa voltará a subir acima dos 8%, mas que só seremos informados disso, convenientemente, depois das eleições. Conn Carroll, comentarista do Washington Examiner, levantou a hipótese de desempregados ligados ao Partido Democrata terem mentido para o censo, a fim de beneficiar a candidatura de Obama. Se tivessem tamanho poder de convencimento e arregimentação, os democratas ganhariam todas as eleições.
Não é a falta de isenção, esse velho mito do jornalismo, que incomoda e desacredita determinados órgãos da imprensa, mas seu farisaísmo. Torcer, vá lá, distorcer, alto lá! Nem depois que Capriles, democraticamente, reconheceu sua derrota eleitoral para Chávez, a Fox News e congêneres deram o braço a torcer. Sem base para contestar os números oficiais da apuração, puseram-na sob suspeita de forma oblíqua. "Pesquisas de boca de urna contaram outra história", alardeou uma chamada da Fox News para o resultado final da eleição-perfídia que o vigilante Glenn Greenwald (ex-Salon, agora no Guardian) descartou como mais um caso, revelador e divertido, de "dissonância cognitiva" daquele canal de notícias.
Segundo o ex-presidente Jimmy Carter, que já monitorou 92 eleições mundo afora, o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo. Essa informação, apesar de corriqueira e ainda não desmentida, nunca foi veiculada, nem sequer levada em consideração, pela imprensa conservadora americana, que trata a Venezuela como uma ditadura igual a outros regimes autoritários para os quais, por motivos ideológicos, faz vista grossa.
A Venezuela pode não ser a democracia na qual eu gostaria de viver, mas, para repetir as palavras do sociólogo Demétrio Magnoli, "ainda não é uma ditadura". Em qual ditadura 80% da população comparece às urnas para escolher seu presidente? Só para efeito de comparação, apenas 54% dos americanos votaram na empolgante eleição que levou Obama à Casa Branca.
Também não tenho simpatia pelo Chávez. Messiânico, fanfarrão, demagogo, bully, aliado a gente que não presta (Mugabe, Kadafi, Assad), contudo há que se reconhecer que ele tem lá bons motivos para embirrar com os governantes americanos e a imprensa que desde o golpe de que foi vítima, em 2002, não sai de sua cola, negligenciando os inegáveis avanços sociais que seus petrodólares financiaram e alimentando intrigas e animosidades infrutíferas. Mary Anastasia O'Grady, do Wall Street Journal, recentemente comparou Chávez ao sanguinário Pinochet. Menos, pessoal.
O mesmo New York Times que há dias, em sua página de opinião, espinafrou as baixarias da direita republicana e na terça-feira publicou um lúcido artigo de Mark Weisbrot sobre a eleição na Venezuela, abriu assim seu editorial de 15 de abril de 2002: "Com a renúncia, ontem, do presidente Hugo Chávez, a democracia venezuelana não está mais ameaçada por um suposto ditador". Ora, Chávez não havia renunciado, fora deposto por "um golpe civil". Tanto não estava a fim de largar o poder que o retomou em menos de 48 horas. Ditador? Mas ele fora eleito por maioria absoluta e quem fechou a Assembleia Nacional e calou o Judiciário foi o fugaz interino Pedro Carmona, esse sim, um suposto ditador, pois, se não só democrata da boca pra fora, teria investido num impeachment e na consequente ascensão do vice Diosdado Cabello.
A repulsa ao chavismo e a oposição a Obama não valem o sacrifício de princípios básicos da convivência e do combate democráticos, nem do bom jornalismo.
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