FOLHA DE SP - 23/08
Desde que Caminha inaugurou o tráfico de influência, nossa tradição é usar o Estado para favorecer privilegiados: barões, coronéis ou conglomerados
"O Código Penal é a causa de todos os crimes."
Millôr
Mensalão não é tipo penal. Mas os delitos de corrupção, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, peculato, gestão fraudulenta e caixa dois de campanha que essa marca de fantasia abriga são. Em variados graus, esses crimes estão presentes entre nós, em sucessivos escândalos, dos primórdios de nossa colonização até o Cachoeira/Delta do momento.
Do ponto de vista histórico, poderíamos numerar o julgamento em curso no STF como Ação Penal 500, e não 470... O Brasil formou-se com estadania e sem cidadania, e a engrenagem dirigente, seja a da Ordem de Cristo aliançada com o Estado absolutista português, seja a dos governos republicanos, favoreceu o patrimonialismo de grupos privilegiados.
Bem além do tráfico de influência que Caminha, escrivão da frota de Cabral, praticou junto a El Rei -pedindo o fim do degredo de seu genro-, o que maculou a sociedade que aqui se forjava foi o tráfico de africanos escravizados, a concentração fundiária e a dizimação dos povos nativos. Corrupção secular e estrutural, que nos faz sangrar até hoje.
O Império manteve monocultura, latifúndio e, como rezava a Constituição outorgada em 1824, "o contrato entre senhores e escravos". Terras e vidas eram bens a serem surrupiados. A quadrinha popular denunciava: "Quem rouba pouco é ladrão/ quem rouba muito é barão".
A República Velha, patriarcal e coronelista, instituiu um sistema eleitoral baseado na fraude: currais eleitorais, voto de cabresto, eleições a bico de pena. Há dramática continuidade disso na atual campanha municipal: nas periferias e nos grotões, vicejam o compadrio, o mandonismo e a compra de votos.
A partir de 1930, com o fortalecimento do setor público no Brasil, cresceram as oportunidades de corrupção e aumentou também a reação a ela, inclusive da imprensa.
A diversidade política, ampliada a partir de 1945 -ainda que com o longo intervalo trevoso e de corrupção oculta da ditadura civil-militar de 1964- metabolizou maléfica criatividade para a consolidação do que hoje se chama governabilidade.
O presidencialismo de coalizão é de cooptação. Repasse de dinheiro, oferta de cargos e liberação de emendas cristalizam o adesismo atávico que permeia nossa tradição política.
O processo de privatizações, sob a capa da modernidade, nos anos 1990, foi eivado de desvios e falta de transparência. Mas não carimbemos a roubalheira como característica nacional. Favorecimento a grandes conglomerados, aplicações em paraísos fiscais e manipulação de taxas de juros para ganhos financeiros são fenômenos mundiais. Quanto mais nossa economia se internacionaliza, mais internalizamos essa dinâmica nefasta.
Espera-se que o Supremo fixe um marco histórico que, vivificado por uma nova consciência cidadã, condene esses crônicos abusos na conquista e no exercício do poder.
O sistema político, que a representação parlamentar não ousa reformar, é indutor de corrupção, cuja porta de entrada é o financiamento milionário das campanhas.
Não é da natureza das empresas fazer doações, e sim investimentos.
Urge reagir ao fatalismo do "é assim mesmo" ou à legitimação do ilegítimo "todos fazem", como sempre alega o PT. O Brasil está diante de uma encruzilhada: pode afirmar o princípio da ética na política ou naturalizar a sua degradação.
A saída depende de uma postura institucional que demanda lastro cultural e pessoal. Que vigore a Carta Magna de artigo único atribuída a Capistrano de Abreu (1853-1927): "Todo brasileiro deve ter vergonha na cara".
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