segunda-feira, junho 04, 2012

Crédito seletivo não é solução - GUSTAVO LOYOLA


Valor Econômico - 04/06


Entre as diversas medidas recentemente adotadas pelo governo para reativar a economia, decidiu-se que o Banco Central (BC) vai liberar recursos dos recolhimentos compulsórios dos bancos para aplicação direcionada a novos financiamentos para aquisição de veículos.

Tal medida configura um retrocesso, quase uma volta aos tempos em que o BC operava como banco de fomento, direcionando recursos a setores específicos beneficiados por incentivos governamentais. Até o final dos anos 1980, era comum ver o BC utilizando-se dos recursos do compulsório para estimular os bancos comerciais a emprestarem para setores eleitos. A origem dessa prática data da própria criação do BC, em 1964, quando se decidiu inscrever em lei que parcela dos recursos captados pelos bancos em depósitos à vista devia ser direcionada de forma compulsória às operações de crédito rural.

Ao longo do tempo, outros setores também se beneficiaram da liberação seletiva de recursos do compulsório para financiamento de segmentos específicos, como o de pequenas e médias empresas. Essas operações de "redesconto seletivo" foram muito comuns principalmente nos anos 1970 e 1980, numa época de verdadeira anarquia monetária, em que um todo poderoso Conselho Monetário Nacional (CMN) distribuía verbas a torto e a direito.

O governo lança mão de um arsenal ultrapassado e que já se mostrou ineficaz e perigoso nas décadas anteriores

Pensava-se que esse tipo de política teria definitivamente desaparecido na poeira da história. Com o gradual aperfeiçoamento das instituições monetárias e fiscais - como a extinção da conta movimento, a criação da Secretaria do Tesouro, culminando com a estabilização da economia e o regime de metas para a inflação - teria perdido todo o sentido utilizar o redesconto e os recolhimentos compulsórios como ferramentas para estímulos setoriais e de subsídio ao crédito. Tais instrumentos voltariam ao leito natural da política monetária e seu uso deveria se restringir à gestão da liquidez no mercado financeiro.

Como se sabe, na crise de 2008, a liberação do compulsório foi utilizada com sucesso para irrigar a liquidez na economia e possibilitar uma rápida recuperação do crédito. O mesmo instrumento continua sendo empregado para reforçar a liquidez das instituições bancárias de pequeno e médio porte, ajudando a preservar a estabilidade financeira necessária ao normal funcionamento da economia. Embora seja uma liberação direcionada, há neste caso uma justificativa razoável pois o BC age para preservar a intermediação financeira e beneficiar toda a economia e não apenas um punhado de setores.

Contudo, na conjuntura atual, caso o diagnóstico oficial seja o de anemia no crédito, o mais correto, a meu ver, teria sido reduzir as alíquotas do compulsório e deixar a alocação dos recursos liberados inteiramente por conta dos bancos. Fazendo isso, o governo teria contribuído para a redução dos "spreads" bancários "across the board", na linha do almejado pela presidente Dilma. Os efeitos benéficos sobre a atividade poderiam até tardar mais um pouco a acontecer, mas certamente seriam bem mais duradouros e saudáveis.

Ao optar pela liberação direcionada do compulsório para operações de financiamento de aquisição de veículos, o governo pode ter estimulado o surgimento de graves distorções, além de suscitar questionamentos dos setores não beneficiados, que exercerão pressões - muitas vezes inafastáveis - para receber semelhante incentivo.

Entre tais distorções, uma das mais graves pode ser a de gerar incentivos para os bancos emprestarem para "clusters" de tomadores com maior risco de inadimplemento, expondo-os ao maior risco de perdas no futuro. A propósito, cabe questionar se a política de liberação seletiva de compulsórios é de alguma forma compatível com os instrumentos contemporâneos de alocação de capital ora exigidos e estimulados pelo Banco Central no contexto de Basileia 2 e 3. Entendo que, ao forçar a mão no direcionamento do crédito para certos setores da atividade econômica, o BC pode estar invalidando os próprios modelos de risco cujo uso tem sido intensificado na indústria bancária em linha com os cânones do Comitê de Supervisão da Basileia.

Outra distorção relevante decorre da necessidade de o BC fiscalizar o cumprimento das regras do direcionamento do crédito, o que gera desvio do foco da supervisão bancária que deveria estar voltado para assegurar a liquidez e solvência das instituições financeiras. Por exemplo, no caso da liberação recente, a norma indica que os recursos não podem ser empregados em "refinanciamento de contratos realizados na própria instituição". Tipicamente é algo que deve ser verificado "in situ" pelo BC, com potencial gasto de preciosas horas de trabalho de uma mão de obra altamente qualificada.

Em suma, impaciente com a demora na recuperação da atividade, e no afã de estimular a demanda, o governo começa a lançar mão de um arsenal ultrapassado e que já se mostrou ineficaz e perigoso na experiência brasileira das décadas anteriores. A reativação do "redesconto seletivo" é mais uma dessas voltas ao passado que pode acarretar consequências potencialmente desestabilizadoras ao longo do tempo.

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