De alguns anos para cá, passou-se a falar em literatura negra brasileira para definir uma literatura escrita por negros ou mulatos. Tenho dúvidas da pertinência de uma tal designação. E me lembrei de que, no campo das artes plásticas, em começos do século 20, falava-se de escultura negra mas, creio eu, de maneira apropriada.
Naquele momento, a arte europeia questionava o caráter imitativo da linguagem plástica e descobria que as formas têm expressão autônoma, independentemente do que representem, ou seja, não é necessário que uma escultura imite um corpo de mulher para ter expressão estética, para ser arte.
As esculturas africanas, trazidas para a Europa pelos antropólogos, eram tão "modernas" quanto as dos artistas europeus de vanguarda, já que fugiam a qualquer imitação anatômica. Foram chamadas de arte negra não apenas porque as pessoas que a faziam eram da raça negra e, sim, porque constituíam uma expressão própria a sua cultura.
Não é o caso da literatura. A contribuição do negro à cultura brasileira é inestimável, a tal ponto que falar-se de contribuição é pouco, uma vez que ela é constitutiva dessa cultura.
O Brasil não seria o país que o mundo conhece - e que nós amamos - sem a música que tem, sem a dança que tem, criada em grande parte pelos negros.
Ninguém hoje pode imaginar este País sem os desfiles de escolas de samba, sem a dança de suas passistas, o ritmo de sua bateria, a beleza e euforia que fascinam o mundo inteiro.
Uma parte dessas manifestações artísticas é também dos brancos mas constituem, no seu conjunto, uma expressão nova no mundo, nascida da fusão dos muitos elementos de nossa civilização mestiça.
Certamente, os estudiosos reconhecem que, sem o negro e sua criatividade, seu modo próprio de encarar a vida e mudá-la em festa e beleza, não seríamos quem somos. Mas teria sentido, agora, pretender separar, no samba, na dança, no carnaval, o que é negro do que não é? E já imaginou se, diante disso, surgissem outros para definir, em nosso samba, o que é branco e o que é negro?
E, em função disso, se iniciasse uma disputa para saber quem mais contribuiu, se Pixinguinha ou Tom Jobim, se Ataulfo Alves ou Noel Rosa, se Cartola ou Chico Buarque?
Felizmente, isso não vai acontecer, mesmo porque, nesse terreno, ninguém se preocupa em distinguir música negra de música branca. O que há é música brasileira.
Mas, infelizmente, na literatura, essa descriminação começa a surgir. Não acredito que vá muito longe, uma vez que é destituída de fundamento mas, de qualquer maneira, contribuirá para criar confusão.
Falar-se de literatura brasileira negra não tem cabimento. Os negros, que para cá vieram na condição de escravos, não tinham literatura, já que essa manifestação não fazia parte de sua cultura.
Consequentemente, foi aqui que tomaram conhecimento dela e, com os anos, passaram a cultivá-la.
Se é verdade que, nas condições daquele Brasil atrasado de então, a vasta maioria dos escravos nem sequer aprendia a ler - e não só eles, como também quase o povo todo - com o passar dos séculos e as mudanças na sociedade brasileira, alguns de seus descendentes, não apenas aprenderam a ler, como se tornaram grandes escritores, tal é o caso de Cruz e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto, para ficarmos nos mais célebres.
Cruz e Souza era negro; Machado de Assis, mulato, mas tanto um quanto outro, foram herdeiros de tendências literárias europeias, fazendo delas veículo de seu modo particular de sentir e expressar a vida. Não se pode, portanto, afirmar que faziam "literatura negra" por terem negra ou parda a cor da pele.
Pode ser que os que falam em literatura negra pretendam valorizar a contribuição do negro à literatura brasileira. A intenção é boa mas causa estranheza, já que o Brasil inteiro reconhece Machado de Assis como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Pelé como um gênio do futebol e Pixinguinha, um gênio da música.
Contra toda a evidência, afirmam que só quando se formar no Brasil um grande público afrodescendente, os escritores negros serão reconhecidos, como se só quem é negro tem isenção para gostar de literatura escrita por negros. Dizer isso ou é tolice ou má-fé.
7 comentários:
Um mundo dividido
sandro silva
Cultura e poder sempre andaram de mãos dadas. Ferreira Gular, o poeta de tantas críticas à Ditadura Militar, que o diga. Ele escrevia tomando um ponto de vista substantivo, que fazia sua obra ser admirada por seu público. Não se aplicava um substantivo à sua obra. Ela não é preta nem branca. Ela era “suja”. Ela era apenas poesia. A boa poesia da gente burguesa, aquecida no inverno e refrescada no verão. Que fala sussurrando seus sorrisos complacentes, que alimentam a si mesmos nos periódicos de amigos. Sentada confortavelmente em suas poltronas fundas e recebendo prêmios de colegas “embora o pão seja caro e a liberdade pequena”. Nós, que não somos os seus “morenos”, que não fazemos só o seu samba e o seu carnaval, que não somos a “grande contribuição à este país”, como se isso fosse uma lápide onde se depositam florem anualmente. Nós não falamos uma língua que se vê detida em uma loja de bolsas na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, esperando o por do sol e a musa. Paisagem idílica onde cruzam marmitas frias e lenços amarrados à cabeça em silêncio silenciadas. Cultura e poder sempre andaram de mãos dadas. Mão esquerda com mão esquerda. Mão branca com mão branca. Nossa ditadura foi diferente. Vocês querem saber? Ela perdura até hoje. Não é sociedade brasileira que morre na mão do estado. São os jovens pretos. Não é natural que eu me levante contra estas letras arrumadas ao acaso, que dizem que não dizem o que dizem. Eu busco exumar os substantivos que os senhores resumiram: cultura brasileira, riqueza da nação, distraídos das vozes do outro lado da rua, do saguão, da portaria, do catre noturno de suas insônias. Não dividam o mundo já dividido, que nossa palavra quer unir, mas não antes de encará-la de frente, nos olhos e com todas as palavras. Não estamos destituídos de fundamentos. Nossos fundamentos são novos e velhos. Essencialmente, eles não são os seus fundamentos. Sem os eufemismos do seu universalismo, estamos os abandonando, saindo do raio de seu desejo de controle ancestral, sua segunda pele que é dissuadir o desejo alheio. Nós já nos reconhecemos, temos nossas vitórias e sabemos quem nos diz não, dizendo que é tolice ou má fé.
Parece fato inconteste, provado e consumado, que o senhor Ferreira Gullar caducou de vez, e dá mostras cada vez mais vergonhosas de a que ponto pode emburrecer um poeta que, se não figura entre os maiores cânones da dita literatura burguesa europeia (não só), é um dos grandes poetas da literatura brasileira do século XX. A leitura de "Poema Sujo" faz abandonar a preocupação com qualquer hierarquia canônica, e entrega-nos ao fluxo impuro do rio que o poeta coloca em curso; ou melhor, do rio que o tragava, prenhe, denso e violento, e que ele soube permitir fluir através de suas palavras e de seu corpo, que estava então por um fio entre a vida e a morte. Porque "Poema Sujo" foi escrito por um poeta exilado que via os amigos tombar pelas mãos de uma ditadura facista, e que sabia que podia ser o próximo a qualquer instante. Segundo seu próprio depoimento, o livro foi esse testemunho de vida emanado de um homem que sentia-se a um passo de perdê-la, por questões políticas, de luta contra a opressão. Aquela não foi a "boa poesia da gente burguesa, aquecida no inverno e refrescada no verão"....(friso que fora a observação sobre esse poema, eu concordo em tudo o mais com o comentário do Sandro)
Por isso, a única coisa que podemos desejar é que Ferreira Gullar seja novamente manculado pelo curso da História, que ela lhe golpeie novos sulcos entre os tantos de sua pele já marcada e envelhecida de memórias e experiências, e que o arraste a ponto de fazê-lo esquecer por completo o conforto de ter uma coluna no principal jornal da principal cidade do país que acaba de se tornar a sexta economia mundial, mas que ainda tem uma baixa renda per capita e a pior distribuição de renda do globo. Que o poeta seja tragado de novo ao abismo, e que todos nos lancemos nele, juntos na queda.
Que o (ex?) poeta tenha respostas menos estúpidas, e mais instigantes, a um problema como o da cultura negra no Brasil; respostas que não descartem o problema que essa categoria polêmica, ambígua, fronteiriça, frágil e inconteste coloca.
O que significa a matriz africana no processo da cultura brasileira? O que significa a (não) inserção social do negro, e a construção de sua identidade, no conjunto complexo da sociedade brasileira? O que significa o tema do negro e a autoria do negro (duas coisas diferentes) na literatura brasileira?
Se Ferreria Gullar quer trabalhar com dicotomias seguras e linhas fixas, realmente não vai conseguir abordar o problema, num país cuja cultura se constitui, desde os primórdios, não de forma linear e unívoca, mas a partir de uma mistura tensa e de uma transfiguração desigual de tradições e povos em relação de exploração e dominação.
A categoria de literatura negra pode tornar-se redutora, assim como qualquer categoria identitária ou temática quando pretende dar conta da totalidade de uma prática artística, restringindo seu enfoque e colocando a criação como mero veículo de um discurso racional e político anterior, que não se permite atravessar por uma exepriência estética transfiguradora que venha ampliar os horizontes a partir de um ponto de partida local, social, até o infinito e universal - universal esse que, para bem informar o sr. Gullar, não é paradigma, não é canône a ser alcançado, não é essência pré-determinada, não é tradição à qual se pede licença e reconhecimento, mas universo de diferenciação, que ao mesmo tempo aproxima e afasta, criando inúmeras linhas de fuga nas zonas de atrito entre os seres, culturas, formas e suas contradições e multiplicidades. E é por isso que não vai ser hoje que o sr. Gullar vai nos enganar, tentando nos convencer com argumentos rasos de que a literatura é universal e branca.
"Se queres ser universal, canta a tua aldeia." Se queres cantar a tua aldeia, mira além dela
(continua)
- e isso os grupos marginais sabem fazer muito bem, como atestam as grandes criações da nossa cultura "mestiça", que, mais do que mestiça, é violentamente desigual. A zona de sombra da tez escura, do ventre rachado, da noite morna que sucede ao dia de trabalho, essa zona prosituída devora e recria a cultura branca establizada. Mano Brown não precisou fazer sociologia, nem Clarice precisou fazer filosofia.
É fato que, muitas vezes, ao invés de dar vazão, por meio da arte e em forma eternamente singular, às especificades irreptíveis de uma voz que emana de um determinado campo da experiência social -numa perspectiva que amplie as perspectivas -, muitas vezes as identidades se tornam fonte de reposição da opressão, obrigando que a voz criadora se restrinja ao campo que a sociedade repressora lhe designara. Por isso que Clarice insistiu em dizer que não é uma escritora feminista e que, enquanto autora, possui os dois gêneros, e quantos mais se puder imaginar. E que não escrevia movida pela crença de que sua literatura mudaria o mundo, mas porque desejava desabrochar de algum modo.
Ao mesmo tempo é irrestível associar a sua literatura com o universo feminino, e valorizá-la por isso, pressentindo que ela só é capaz de revelar certas coisas, certo modo de perceber as coisas, por ser autora mulher. Da mesma forma, a literatura negra existe e não existe, pulsa e se ultapassa, desvia-se, ganha e perde corpo a todo momento, como em seus rituais "pagãos". É uma zona que, mesmo que fronteiriça, não pode ser negada, sob pena de se furtar ao debate e de perpetuar-se uma exclusão. Pelo mesmo motivo, talvez não valha à pena afirmá-la, firmá-la, canonizá-la, já que ela é contra cânone, e os grandes escritores, sambistas e rappers nunca se preocuparam muito com afirmações, dedicando todo seu tempo possível às criações, investigações, alquimias, críticas e, sempre, poesias, mesmo quando, e de preferência, às avessas.
Talvez, somente nisso, eu concorde com o sr. Ferreira: a literatura não tem pressupostos. Ou, se os tem, são estéticos, são a presença do trabalho estético da realidade. Talvez isso explique porque Ferreira Gullar foi um bom poeta, e Borges, reacionário. Pois bem, sr. Poeta, a estética e a literatura não têm pressupostos. Mas têm história. E como.
é... o companheiro tentou colocar o Samba da Benção de Vinicius, mas... pra mim este discurso da democracia racial não colou muito não!! Pessoalmente, percebo que as nossas formas literárias podem sim ser europeias, mas também a literatura veio sim nos textos nos navios negreiros, em histórias dos Orixas, em contos, lendas, músicas... não reconhecer isso como Literatura é um grande equivoco para nossa historia brasileira e é o que esse discurso do mito racial-democrático brasileiro mais faz (aniquilar a historia e as diferentes formas de contar esta história)... vejo que existe sambas brasileiros, existem sambas intelectuais-elitistas (exemplo, bossa nova, cujo me agrada muitíssimo), mas existem também sambas negros e bem negros que contam o sofrimento da dor da usurpação sofrida assim como nas muitas cantigas de rodas capoeira)... existe o samba negro sim, o samba duro, a umbigada e o samba que sai do couro do Rum, do Rumpi e do Lé chamando e recepcionando os Orixás!!! Porque afinal de contas, o que se faz no terreiro, com o divino, é samba!!! ENTÃO, RESPEITO COM O SAMBA, POR FAVOR!!! O Pixinguinha e Cartola, que o colega se refere foram uns dos poucos sambistas negros que ganharam projeção, pois as maiorias dos sambistas que não contam piada e faz em forma de oração (assim como fala Vinicius), nasceram, moraram e vivem no anonimado!!! E o que falar do Hip Hop??? Sem comentários... Então, por que não falar de Literatura Negra na perspectiva dos negro, agora enquanto sujeito social e crítico, colocando as mesmas formas de entender o mundo como esses sambas que viveram no anonimado?!? E fato de existir uma Literatura Negra, não quer dizer que sejam feitas só para negros, por favor!!! Então, eu quero fazer sim minha Literatura Negra, Literatura Indígena, Cigana e Baiana sim, por obséquio!!!
O.o
E na História que têm, a um tempo multívoca e fatalista, há o pressuposto da dominação, ao qual não escapamos. Mas, caso estejamos confortavelmete instalados no pólo dominante, podemos não percebê-lo, e acreditá-lo inexistente. Completamente livre de pressupostos, só o silêncio, isento de fundamentação. Mas se no seio social surge uma nova definição para determinada literatura, antes de encará-la como verbete de enciclopédia, como capítulo de livro didático de colegial (terríveis no Brasil), como categoria que aparece nas colunas da Ilustrada, é preciso encará-la face à face, como disse Sandro. E isso, nitidamente, o poeta não fez, porque não vai mais às ruas.
Se escrevo com o lápis preto Nº2 minha escrita é negra?
http://www.recantodasletras.com.br/poesias/627777
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