O ESTADÃO - 18/12/11
Gostara de ouvir do fotógrafo que eles viviam cercados pela arte. Não era só miséria
Seu Virgílio estava acostumado com turistas visitando a favela. Ele era o único que ficava em casa durante o dia e passava o tempo sentado na frente do barraco, de calção e camiseta, fumando seus cigarrinhos e vendo o movimento. O número de turistas aumentara depois da pacificação do morro.
Os turistas vinham em bando. Alguns tinham até guias, que diziam aos turistas para onde olhar, e dizer hum ou ah ou meu Deus. Mas aquele turista parecia diferente. Para começar, estava sozinho. E em vez de fotografar o esgoto, as roupas coloridas penduradas e as crianças brincando na lama, fotografava paredes. Paredes. Parara na frente do barraco do seu Virgílio, apontara a câmera para um trecho da madeira que forrava seu exterior e clic. E clic e clic.
Só depois do terceiro clic o fotógrafo se lembrou de perguntar ao seu Virgílio:
– Dá licença?
– Hrmf – respondeu seu Virgílio, o que poderia significar sim ou não.
– Estou fazendo um livro – explicou o fotógrafo. – Se chamará Superfícies. Será só de coisas como esta sua parede. Viu como este pedaço aqui poderia ser uma pintura abstrata? A madeira estriada, a superposição de tábuas... Poderia ser um Burri.
– Um quê?
– Burri. Alfredo Burri. Abstracionista italiano.
– Ahn.
– Esta favela está cheia de coisas assim. Há Burris por todo lado. É só saber encontrá-los. E colagens? Materiais corriqueiros usados de forma não convencional, em montagens surpreendentes e esteticamente perfeitas. O que é uma favela, afinal, senão uma grande colagem? Arte pura! Vocês vivem cercados pela arte.
Seu Virgílio perguntou se o fotógrafo poderia lhe dar um cigarro. O fotógrafo não fumava. Depois de mais alguns clics, o fotógrafo agradeceu e começou a se afastar, mas aí deu uma coisa no seu Virgílio. Uma coisa que ele mesmo não saberia explicar depois. Deteve o fotógrafo com um gesto e disse:
– O senhor não quer entrar? Tem uma mancha na parede da cozinha que...
A pequena cozinha era a única parte do barraco feita de alvenaria. E havia uma grande mancha na parede da cozinha. Uma grande mancha multicolor causada pela umidade e por muitos anos de fritura no ar. Seu Virgílio apontou a mancha para o fotógrafo, que abriu os braços e exclamou:
– Manabu Mabe!
Seu Virgílio também não saberia explicar por que ficara tão feliz por ter um Manabu Mabe na parede, mesmo um Manabu Mabe feito de água infiltrada e fumaça. Nem iria contar para a Ernestina quando ela e os cinco filhos voltassem aquela noite. Sabia que Ernestina perguntaria “Manaquem?!” e diria “Isso é que dá passar o dia inteiro sem fazer nada”.
Guardaria aquela felicidade só para ele. Gostara de ouvir do fotógrafo que eles viviam cercados pela arte. Não era só miséria. Ou então, pensou seu Virgílio, eu também estou ficando meio abstracionista.
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