A conta da rigidez do gasto público
ROGÉRIO FURQUIM WERNECK
O Globo - 16/09/2011
A delicada agenda de negociação do governo com o Congresso, neste final de ano, traz à tona dificuldades fundamentais do problemático regime fiscal brasileiro.
O governo está empenhado em convencer o Congresso a prorrogar, uma vez mais, a chamada Desvinculação de Receitas da União (DRU). Trata-se de emenda constitucional, com vigência periodicamente renovada desde 1994, que se tornou imprescindível para manter as contas públicas federais minimamente manejáveis. Sem ela, o efeito combinado do emaranhado de vinculações orçamentárias superpostas, que enrijece o processo orçamentário, reduziria a proporções ridículas a liberdade com que contam o Poder Executivo e o Congresso para decidir, a cada ano, como despender a receita da União.
A DRU atua como um comando "desfazer". Tendo em vista o excesso de vinculações e outras restrições impostas pela Constituição, o Congresso se vê compelido a aprovar, de tempos em tempos, uma emenda constitucional compensatória que anula parcialmente a rigidez de gasto que tais entraves implicam, ao liberar, para livre alocação no Orçamento, 20% dos recursos supostamente vinculados. Parece esquizofrênico, mas é isso mesmo. São tantos os entraves orçamentários impostos pela Constituição, que se torna necessária uma emenda constitucional, periodicamente renovada, para atenuar os efeitos de tais entraves.
Dez anos atrás, ocupava lugar de destaque na agenda de reforma fiscal do país a ideia de desmontar, pouco a pouco, tais entraves, de forma a reduzir paulatinamente a rigidez do processo orçamentário federal. Essa ideia perdeu força a partir de 2003. E simplesmente desapareceu de cena desde o final de 2005, quando o projeto maior de reforma fiscal foi definitivamente abandonado.
Entusiasmado com o desempenho da arrecadação, o governo passou a considerar excessivamente custoso o esforço de abrir espaço no dispêndio primário para gastos de melhor qualidade. Preferiu apostar na folga orçamentária que poderia advir do aumento de receita e, quem sabe, da redução da conta de juros sobre a dívida pública, na esteira da consolidação da estabilização.
Na verdade, com essa postura conformista, o governo nem mesmo conseguiu sustar o progressivo enrijecimento do processo orçamentário. Basta ter em conta a desastrosa lei de superindexação do salário mínimo aprovada há poucos meses e as dificuldades com que se debate o governo, agora, para negociar com o Congresso os termos de uma nova escalada de vinculações orçamentárias relacionadas a gastos com saúde.
A isso chegamos. Ao mesmo tempo em que, de um lado, se vê obrigado a convencer o Congresso a renovar mais uma vez a DRU, o governo, de outro, vem tentando defender-se, na medida do possível, de uma decisão do Congresso que venha a implicar enrijecimento ainda maior do Orçamento.
O melhor indicador da apreensão do governo com essa decisão é a gritante volatilidade do seu discurso sobre a questão, bem notada por Rosângela Bittar em lúcida análise no "Valor Econômico" de 14/9. A última versão do discurso oficial sugere que o governo pretende dissimular a preocupação e se fingir de morto. A ideia é que o Planalto agora estaria entendendo a regulamentação da emenda 29 como um aperto que afetará somente estados e municípios, para assegurar que seus dispêndios com saúde correspondam, de fato, a 12% e 15% de suas receitas, respectivamente. Da União continuará a ser exigido "apenas" que os gastos com saúde sejam expandidos no mesmo ritmo de expansão do PIB nominal.
O problema é que na proposta original de regulamentação da emenda 29, feita por senador do próprio PT, havia a exigência de que os gastos da União com saúde saltassem de 7% da receita para um mínimo de 10%. O que o governo mais teme é que, no calor da refrega, tal exigência acabe sendo aprovada pelo Congresso. Se ficar claro que isso será inevitável, o governo vai partir com tudo para a recriação da CPMF.
Sob o atual regime fiscal, são essas as regras do jogo. O contribuinte há de entender.
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