De profundis
CARLOS HEITOR CONY
FOLHA DE SP - 04/09/11
RIO DE JANEIRO - Lembrei recentemente o episódio do sujeito que precisava enterrar a mulher e encontrou os cemitérios sob intervenção federal devido ao roubo de estátuas e sepulturas. A corrupção atingira até mesmo as últimas moradas dos mortais.
Tivemos agora, por outros motivos, uma greve dos coveiros, creio que inédita, mas necessária. Com raríssimas exceções, os cemitérios brasileiros são uma calamidade, e até mesmo degradantes.
Há uma geral falta de dignidade e nem sempre os coveiros são os responsáveis. Aliás, um dos mistérios que nunca entendi direito foi a existência de duas categorias profissionais: o coveiro e o bandeirinha de futebol.
Em uma pesquisa entre crianças para saber o que pretendem ser na vida, nenhuma delas mencionará a atividade do coveiro e a do bandeirinha. No entanto eles existem, um deles se tornou famoso quando desenterrou a caveira de Yorik e deu a Hamlet a oportunidade para um dos grandes momentos de William Shakespeare.
Não foi no meu tempo, mas na gripe de 1918, que ficou na história como a Espanhola. Pelo menos no Rio de Janeiro foi uma calamidade. O camarada ia atravessar a rua com saúde e chegava na outra calçada em condição de cadáver.
Nem os coveiros nem os cemitérios davam conta da oferta, muitos botavam os corpos na calçada, prática que foi condenada pelas autoridades sanitárias. Com a imaginação dos cariocas, bolou-se uma alternativa. O corpo era levado para os bondes, para qualquer um que passasse pela rua. A família pagava a passagem. No fim da linha, o único passageiro vivo era o motorneiro, mas nem sempre.
Sabemos que, hoje, a procura de corpos ceifados pela ditadura militar faz parte de uma Comissão da Verdade. Recuando no tempo, ainda não se sabe onde tantas vítimas da Espanhola foram parar.
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