Estados Unidos, Europa e o Banco Central do Brasil
AFFONSO CELSO PASTORE
O Estado de S.Paulo - 04/09/11
Será que o mundo está indo para uma nova crise, como a ocorrida em 2008, que possa afetar sensivelmente o crescimento econômico brasileiro? Para encaminhar uma resposta vou olhar em maior profundidade para o que vem ocorrendo nos Estados Unidos e na Europa. Mas quero adiantar duas conclusões. A primeira é que a menos de uma "solução" desordenada para a crise de dívida soberana nos países da periferia do euro, que acarrete uma crise bancária, não há como comparar o que vem ocorrendo atualmente no mundo com a "catástrofe" de 2008. Assistiremos a um crescimento mais lento do PIB mundial, mas o Brasil não será obrigado a reagir com medidas extremas. A segunda é que o cenário internacional não justifica o movimento realizado pelo Banco Central na última reunião do Copom.
Comecemos pelos Estados Unidos. Em artigo recente Rogoff afirmou que esta não é a "grande recessão", como vem sendo definida pela maioria esmagadora dos economistas, nem uma "grande depressão", como a de 1929, mas sim a "grande contração". Esta não é uma questão puramente semântica. Em todas as recessões do pós-guerra, inclusive a de 1983, quando a taxa de desemprego chegou a 11%, decorridos poucos trimestres após a decretação de seu término o PIB já havia superado o pico prévio, e o desemprego já havia retornando à media histórica. No caso da presente "contração" já decorreram mais de oito trimestres desde que o NBER decretou o final da recessão, e o PIB ainda está abaixo do pico prévio, com o desemprego mantendo-se em torno da taxa de 10%, sem perspectivas de declinar nos próximos trimestres.
A grande diferença entre o atual episódio e todas as demais recessões do período pós-guerra está no papel do endividamento das famílias, que desta vez é excessivo, obrigando a uma "desalavancagem " que limita a velocidade de recuperação do consumo. Entre 1960 e 1985 o endividamento das famílias flutuava entre 60% e 70% da renda disponível, sendo ainda menor antes de 1960, mas nos anos de ouro da Grande Moderação ele literalmente explodiu, chegando a 130% em 2008. Como isso ocorreu? A valorização dos preços das casas e dos ativos financeiros gerou uma sensação de riqueza que levou as famílias a consumirem não somente uma proporção elevada da renda, mas também da renda futura, elevando o endividamento.
Nos Estados Unidos, da mesma forma como ocorreu na década perdida dos anos 90 no Japão, esse endividamento terá que se reduzir. No Japão foram as empresas que tiveram que reduzir os investimentos para pagar a dívida, e no caso norte-americano são as famílias que têm que reduzir o consumo para pagar a dívida excessiva. Ocorre que o consumo representa mais de 60% do PIB, e dado o seu baixo crescimento, ao lado da estagnação do setor mais dinâmico na saída de todas as recessões prévias - o imobiliário, que continua em crise aguda - não há como acelerar o crescimento do PIB.
Este quadro já era claro há algum tempo para os economistas acadêmicos, mas permaneceu obscuro para os que buscavam analogias entre o atual episódio e as demais recessões. A "ficha começou a cair" com três episódios. O primeiro foi a negociação do limite de dívida, que retirou do governo norte americano sua capacidade de usar estímulos fiscais adicionais. Com a taxa básica de juros já próxima de zero, a expansão fiscal é o único instrumento eficaz para elevar a demanda, e ele foi perdido, pelo menos ate a próxima eleição. O segundo foi o final do QE-2, que removeu um instrumento monetário não convencional que, bem ou mal, vinha gerando algum estímulo. O terceiro foi a revisão dos dados do PIB, que pôs a nu o fato de que a recuperação vinha sendo muito mais lenta do que se julgava.
As projeções de consenso para o crescimento do PIB saíram de taxas ao redor de 3% e 3,5%, no início deste ano, para perto de 1%, agora. Com taxas tão baixas, e considerando a volatilidade natural das taxas trimestrais de crescimento, é perfeitamente possível que tenhamos em breve dois trimestres consecutivos de taxas negativas, o que caracterizaria uma recessão mesmo que a média anual seja de 1%. Alguns indicadores mais recentes confirmam esse quadro pessimista. Por exemplo, o índice de confiança dos consumidores de Michigan, que é um bom indicador das variações do consumo, e o índice de atividade da Filadélfia, que é um bom indicador das taxas de variação do PIB, ambos atingiram no último mês níveis indicativos de uma recessão próxima.
À piora do quadro adiciona-se a ausência de instrumentos de política econômica. A Europa também sofre da mesma doença. Não se pode usar a política fiscal nem nos países da periferia do euro, que estão à beira da insolvência, nem nos países economicamente mais fortes como Alemanha e França, porque suas dívidas públicas já são grandes demais. Não há, também, campo para o uso da política monetária voltada a estimular o crescimento, porque o BCE é o banco central de uma união monetária que somente pode cuidar de manter a inflação baixa. Mais ainda, os países que precisam crescer para solucionar seus problemas de dívida soberana não têm moeda própria que possa se depreciar com relação às demais, elevando as exportações e, consequentemente, o crescimento econômico.
Crises de dívida como as da Grécia, Portugal e Irlanda terminam ou com uma reestruturação, ou com uma inflação, que reduza o valor real da dívida, ou com um "default". A relutância em reestruturar as dividas e a impossibilidade de solucionar o problema através da inflação, gera o aumento do risco de default. É por isso que os CDS de desses países abrem prêmios tão elevados, mesmo com o Fundo Europeu e o FMI dando recursos para a compra de todos os vencimentos de seus bônus do governo até 2013, e com as compras do BCE no mercado secundário.
Preso a uma moeda única e sem mobilidade de mão de obra o euro só pode sobreviver com uma união fiscal que resolva dois problemas: permita a reestruturação das dívidas impondo regras que impeçam que esses problemas voltem a ocorrer; e uniformize o crescimento, impedindo disparidades tão grandes nas taxas de desemprego. Esta é a "grande solução", mas significa a perda de soberania por parte de cada país.
Investidores influentes como George Soros lutam pela criação de um "bônus europeu". Esse instrumento só faz sentido tendo como lastro a arrecadação tributária de um "Tesouro da Europa", que seria de fato a criação de uma união fiscal. Mas isso eliminaria, ou pelo menos reduziria, a soberania dos países. Não surpreende que haja tanta oposição por aparte dos lideres políticos aa criação deste instrumento.
Quando os EUA tiveram sua dívida rebaixada, um investidor com a argúcia de Mohamed El Erian vaticinou que a taxa de juros nos Estados Unidos se elevaria. Mas o que ocorreu foi o contrário. A queda das taxas dos bônus de 10 anos do tesouro dos EUA para próximo de 2% ao ano não poderia nunca ser explicada pelo rebaixamento dos EUA, porque o aumento do risco teria gerado a venda destes bônus, baixando seus preços e elevando a taxa de juros. É um movimento que somente pode ser explicado pelo aumento simultâneo (e independente) dos riscos soberano e bancário na Europa, provocando a venda de ativos europeus e a compra de ativos norte americanos, que continuam tendo um risco menor do que os europeus, apesar do rebaixamento.
Quando este aumento na aversão ao risco cresceu ocorreram fenômenos semelhantes aos ocorridos em 2008. Caíram as taxas de juros em países vistos pelo mercado como "portos seguros", como é o caso de Estados Unidos, Alemanha e Suíça; elevou-se o preço do ouro; e caíram os preços das ações, porque estes são ativos onde o risco de variação dos preços é muito elevado.
Esta turbulência trouxe a memória dos acontecimentos de 2008. Mas a semelhança para nesse ponto. Qualquer observador atento irá descobrir que os fluxos internacionais de capitais continuam fortes e sadios, tanto que não ocorreram depreciações cambiais dignas de nota em nenhum país emergente, nem há quaisquer sinais de redução em empréstimos bancários. Nem há, também, quaisquer indicações de que o comércio internacional possa sofrer sequer aproximadamente a queda ocorrida em 2008. Não estamos, portanto, diante de canais de transmissão ativos como em 2008, que propagaram a crise para todos os países do mundo.
Até aqui estamos muito distantes do que ocorreu após a falência do Lehman Brothers. Por isso não se pode falar em uma recessão mundial. Este é o aspecto positivo do atual episódio. Apesar da baixa capacidade de crescer dos Estados Unidos, daquele país não vem nenhuma onda de choque que repita algo semelhante a 2008. O risco de um "evento de cauda" vem somente da Europa. Para que ele ocorra basta que ocorra uma solução desordenada da dívida soberana de algum país, ou que se dispare uma crise bancária. Quando isso ocorrer, e se isso ocorrer, o Brasil seria chamado a uma reação, e neste caso seria muito melhor reagir reduzindo a taxa de juros em vez de fazer uma expansão fiscal, como ocorreu na esteira da crise de 2008.
Mas por mais preocupante que seja o quadro atual ele não justifica uma ação como a que foi tomada pelo Banco Central do Brasil.
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