Os mercadores de Veneza
ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 24/08/11
Chamar as prateleiras do supermercado de gôndolas é como construir prédios no meio do Ibirapuera
FOI COM GRANDE assombro e não menor repúdio que eu descobri, dia desses, que as estantes dos supermercados chamam-se gôndolas.
Até então, tinha cá para mim que gôndolas eram utilizadas única e exclusivamente para levar casais apaixonados, espiões russos e turistas japoneses pelos canais de Veneza. Jamais imaginaria que esse mesmo substantivo pudesse, encalhado num piso de linóleo e sob o tremelicar quase imperceptível das lâmpadas fluorescentes, sustentar pacotes de biscoito, caixas de sabão em pó, gordura vegetal hidrogenada.
Nunca fui a Veneza. Talvez seja melhor assim. Sua existência, não confirmada pessoalmente, continua a fazer parte do meu imaginário infantil: a cidade cujas ruas são feitas de água está para São Paulo como os unicórnios para os cavalos, os vulcões para as montanhas, os dinossauros para as lagartixas. E, se o chifre do unicórnio não é qualquer chifre, mas uma lança espiralada, inexistente noutros animais, os barcos da cidade aquática tampouco poderiam ser meras lanchas ou canoas: são gôndolas, com suas pontas curvas como as dos sapatos do Sultão d'As Mil e Uma Noites, de Ali Babá e Seus Quarenta Ladrões, dos gênios que surgem da lâmpada, em meio à fumaça, prontos a realizar três desejos. Alguma semelhança com prateleiras de fórmica e aço inox, caro leitor? Não, não, eis aí um atentado contra a língua, um crime de lesa-poesia que deve ser reparado o quanto antes.
Veja bem: as cidades têm regras para protegê-las da voracidade do mercado. Planos diretores, leis de zoneamento: ali pode prédio, aqui não. A propaganda tem leis para conter a falta de escrúpulos dos anunciantes: álcool não deve ser anunciado para menores de idade, cigarros estão proibidos de patrocinar eventos esportivos. O próprio mercado precisa ser regulado externamente. As palavras, contudo, quem as protege? Ninguém. Um dia, um infeliz decide batizar as estantes de gôndolas e pronto, o mal está feito.
Trazer a gôndola dos canais de Veneza para as seções de laticínios é, para a linguagem, equivalente a construir um prédio no meio do Ibirapuera, para as cidades. Uma gôndola de supermercado, meus amigos, é um unicórnio abatido para, do marfim de seu chifre, arrancarem cinzeiros e bolas de sinuca.
Minha bronca com esse sequestro semântico é tanta que, se nesta manhã fria, enquanto escrevo a crônica, me aparecesse um gênio da lâmpada, com seus gondulares sapatões, incluiria no pacote de desejos o pedido para que rebatizasse as prateleiras dos supermercados, restituindo assim à gôndola a grandiosidade arruinada por latões de óleo de soja e saquinhos de Miojo.
Ou os mercadores dão às estantes um nome apropriado -estantário, prateleiral, "trúncio", por que não?- e devolvem à humanidade esse belíssimo substantivo, ou lançarei uma ampla contraofensiva na internet, com apoio de poetas, de escritores e da máfia italiana: passaremos a chamar cartão de crédito de avestruz, caixa registradora de asa-delta e crachá de buganville. Para cada grama de lirismo que nos foi roubado, um grama será devolvido, impiedosamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário