A espada de Dámocles
FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SÃO PAULO - 27/03/11
A ameaça maior que restou está no uso pacífico da energia atômica, que se mantém nas usinas nucleares pelo mundo
ESTA MINHA mania de dizer que a vida é inventada pode nos ajudar a ver mais claro algumas coisas. Por exemplo, a energia atômica sempre existiu, mas era como se não existisse, até que cientistas a descobriram e inventaram meios de utilizá-la. Isso poderia não ter acontecido, ou ainda não ter acontecido, dependendo de uma série de fatores. Tanto assim que, durante milênios, o homem viveu sem se valer desse tipo de energia.
Afora a força de seus braços, recorreu à tração animal, à força dos ventos e das águas, até que inventou modos de utilizar o vapor e a eletricidade. Mas lá um dia descobriu-se que a desintegração dos átomos poderia gerar uma energia muito mais poderosa do que todas as energias conhecidas. E poderia ser usada tanto bélica quanto pacificamente.
O uso bélico teve precedência: construíram-se bombas que, em Hiroshima e Nagasaki, mataram centenas de milhares de pessoas.
Isso foi em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial. Aí começou a Guerra Fria e o equilíbrio de terror determinado pelos arsenais atômicos norte-americanos e soviéticos. O mundo viveu, então, décadas de pânico permanente, temendo todos os dias que algum fato aleatório provocasse a guerra nuclear e, com ela, o fim da humanidade, uma vez que aquelas duas potências militares dispunham de poder atômico capaz de liquidar várias vezes a vida no planeta. Bastaria que um foguete extraviasse, acidentalmente, e tomasse a direção de um daqueles países.
Por sorte, isso não aconteceu, a Guerra Fria acabou e com ela a corrida atômica. Não obstante, os arsenais nucleares não foram inteiramente destruídos. Além disso, outros países também possuem esse tipo de arma, e há ainda os que trabalharam para tê-la. De qualquer modo, a possibilidade de uma guerra atômica mundial parece descartada. Mas não a ameaça nuclear em si mesma.
Paradoxalmente, hoje, a ameaça maior, que restou e se mantém, está no uso pacífico da energia atômica, isto é, nas usinas nucleares espalhadas pelo mundo.
É evidente que o que me leva a escrever sobre esse tema, agora, é o terremoto que atingiu o Japão. Dele decorreu um tsunami devastador que atingiu a usina nuclear de Fukushima, a cerca de 240 quilômetros de Tóquio. Em poucas horas, o grau de radiação, provocada pela explosão de um dos reatores, subia mil vezes acima do nível normal. Duzentas e dez mil pessoas tiveram que ser, imediatamente, evacuadas da região.
Depois disso, apesar das providências tomadas pelos técnicos, mais três reatores explodiram, vazando vapor, cujas consequências, até o momento em que escrevo, ameaçavam contaminar a população da capital japonesa.
Esse fato trouxe, inevitavelmente, à memória de todos, a explosão do reator central da usina de Tchernobil, em 1986, na antiga URSS, tido como o maior desastre nuclear já ocorrido. O total de mortos, ao logo dos anos, calcula-se entre 30 e 50 mil.
Se no caso atual da usina japonesa, a causa foi natural, o acidente de Tchernobil, segundo os técnicos, foi provocado por erros humanos. Como afirmar que não voltarão a ocorrer em qualquer outra usina? A alta tecnologia das usinas japonesas não impediu o desastre, cujas consequências últimas ninguém pode prever. Tudo isso prova que não há garantia de segurança. E o lixo atômico, onde iremos sepultá-lo? Já se fala em pô-lo na órbita da Terra! Já pensou?
A pergunta que, inevitavelmente, as pessoas se fazem é: por que manter funcionando tais usinas, que são um risco permanente para todos os seres vivos do planeta?
Não está escrito em nenhum livro sagrado que a energia atômica tem que ser mantida, a qualquer preço. Há outros tipos de energia no mundo, cuja produção é inofensiva. Se a utilização das energias solar e eólica, em escala capaz de atender as necessidades atuais da humanidade, terá alto custo, não será maior que o das usinas nucleares, não apenas com sua segurança e manutenção, mas, sobretudo, com a perda de vidas humanas, a destruição do meio ambiente e os desastres econômicos, como o que agora atinge o Japão: cerca de US$ 250 bilhões.
Por que teremos que viver com essa espada sobre nossa cabeça?
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