Longevidade de um ditador está na loucura
DAVID BROOKS
The New York Times
O Estado de S.Paulo - 27/03/11
Há uma pergunta que sempre fiz a mim mesmo em relação a Muamar Kadafi: como um sujeito que mal parece manter contato com a realidade consegue se manter no poder por 42 anos? Ele faz discursos delirantes e incoerentes em palcos como as Nações Unidas. Sua cabeça esta cheia de esdrúxulas teorias da conspiração e estranhas obsessões, como pedir a eliminação da Suíça ou culpar o serviço de espionagem israelense pela morte de John F. Kennedy. Ele visita países estrangeiros usando roupas estranhas, revelando seus extravagantes gostos pela maquiagem e pelo gel de cabelo, e em certa ocasião afixou uma fotografia ao próprio peito. Ele tem um contingente de guarda-costas exclusivamente femininas.
Em 2008, ele anunciou uma reforma no governo que incluiria, entre outras providências, a abolição de todos os ministérios do governo, com exceção da Defesa, da Segurança Interna e alguns outros.
Estas não são as medidas de uma personalidade fria, calculista e maquiavélica. Mas Kadafi não pode ser simplesmente desconsiderado como um mero lunático. Ele manteve domínio sobre uma região implacável, e é possível que sobreviva às atrapalhadas tentativas de depô-lo.
Parece que há certa vantagem na megalomania que constitui o traço mais marcante da vida de Kadafi. Ele foi expulso da escola por tentar organizar uma greve dos estudantes. Começou a planejar um golpe para tomar o poder no país quando ainda estava na faculdade. Comparou-se muitas vezes a Jesus Cristo e ao Profeta Maomé. Ele chama o Livro Verde que contém seus ensinamentos de "novo evangelho".
Kadafi aparentemente escreveu o livro com a convicção de ter descoberto as respostas para todos os problemas da raça humana, o que ele chama de Terceira Teoria Universal. Num trecho particularmente absolutista, ele escreve, "A Verdadeira Democracia tem apenas um método e uma teoria".
Pelo caminho, ele nos oferece observações banais como se ninguém jamais tivesse pensado nelas antes. Revela que as mulheres menstruam, mas os homens, não. Apresenta doutrinas que nada têm a ver com seu comportamento real: "O ensino obrigatório é uma educação coercitiva que suprime a liberdade. Impor conteúdos específicos a ser ensinados é o gesto de um ditador".
Ele parece ser uma daquelas pessoas que acreditam ser portadoras da verdade universal, que desejam impor sua maneira de pensar a todos os demais e exercer seu domínio sobre os outros como um tipo de super-homem da história mundial.
Foi assim que ele administrou seu país. De acordo com o Índice de Liberdade da Imprensa, a Líbia é o país do Oriente Médio e do Norte da África em que os censores são mais atuantes, um feito notável.
Especialistas estimam que até 10% ou 20% da população pode ser de informantes do serviço estatal de segurança. Para eliminar a influência do exterior, Kadafi chegou certa vez a tirar os idiomas estrangeiros das escolas e a remover as placas de ruas escritas no alfabeto latino.
No início de seu governo, ele expulsou a comunidade italiana, obrigando seus membros a exumar os cadáveres de italianos para tirá-los dos cemitérios líbios e levá-los de volta para casa. A exumação foi transmitida ao vivo pela TV estatal. Cartazes colados pelas ruas trazem mensagens como "Obedeça às Autoridades".
Ao longo das décadas, ele tentou reformar o mundo À sua imagem grandiosa. Tentou criar um império maior por meio da fusão entre Líbia e Sudão. Tentou criar uma Federação de Repúblicas Árabes com o Egito e a Síria. Tentou criar uma Legião Árabe. Chamou a si mesmo de Rei dos Reis, Imã de Todos os Muçulmanos e, em 2009, tentou criar os Estados Unidos da África.
Criou academias de censura e treinou alguns dos autocratas mais brutais do mundo e, é claro, apoiou movimentos terroristas na Austrália, na Irlanda, na Alemanha e além.
Mas é a própria megalomania que parece ser ao mesmo tempo o segredo de sua longevidade e também de sua natureza desequilibrada. O fato paradoxal é que, para se manter no poder como ditador, é mais fácil agir como um totalitário narcisista do que como um autocrata medíocre.
Megalômanos como Kadafi buscam controlar cada neurônio do seu povo, bem como cada aspecto da vida dele. Eles destroem todas as autoridades externas e a sociedade civil. Personalizam cada instituição para que corpos como o Exército existam apenas para servir à sua divina pessoa, e não ao país como um todo.
Não são perturbados pelas dúvidas nem pela preocupação com a opinião favorável dos outros, pois são portadores da verdade absoluta. Sua motivação é o cumprimento de sua Missão Histórica Mundial, sem nenhum interesse numa aposentadoria pacífica em alguma mansão.
Anos atrás, Jeane Kirkpatrick estava certa ao fazer uma distinção entre as ditaduras autoritárias e as ditaduras totalitárias. As totalitárias são mais distorcidas e mais difíceis de depor. A desequilibrada e narcisista maluquice de Kadafi parece ser a chave da longevidade. Portanto, lembre-se: se quiser ser um tirano, seja um amalucado. É mais seguro assim. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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