A dolorosa
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SÃO PAULO - 24/11/10
Cedo ou tarde, um governo que financie gastos com a venda de ativos enfrentará o momento da verdade
HÁ ALGUMAS semanas, Alexandre Marinis me chamou a atenção para um assunto até então pouco notado: o peso crescente das receitas extrafiscais (dividendos de empresas estatais e receitas de concessões) na constituição dos superavit primários do governo federal.
Mesmo relevando o caso mais patológico nessa área (os R$ 32 bilhões associados à "venda" de direitos de exploração de petróleo), tais receitas, que representavam algo como 14% do superavit médio no período 2003/2008, saltaram para 46% do saldo entre 2008 e 2010.
Medidas a preços constantes de setembro deste ano, tais receitas cresceram de cerca de R$ 10 bilhões em meados de 2008 para R$ 28 bilhões nos últimos 12 meses.
Essa evolução revela um segredo de polichinelo: o esforço fiscal, em particular do governo federal, vem caindo consistentemente.
Retirando as receitas extrafiscais do cálculo do saldo primário, assim como as despesas extrafiscais (o depósito no Fundo Soberano em 2008, por exemplo), estimamos que o superavit federal tenha se reduzido de uma média equivalente a 2% do PIB (Produto Interno Bruto) entre 2002 e 2008 para pouco menos de 0,5% do PIB nos últimos dois anos.
Se, com algum esforço de imaginação e boa vontade, era possível fingir que a piora de 2009 devia-se à atuação contracíclica do governo, o desempenho de 2010 não deixa dúvida de que enfrentamos uma expansão fiscal persistente e considerável, da ordem de 1,5% do PIB.
Obviamente não faltará quem justifique que receitas são receitas, não interessa se sua origem seja tributária ou proveniente de fontes extrafiscais, mas há problemas nada triviais com esse argumento.
É verdade que, no sentido de controlar a expansão da dívida relativamente ao PIB, qualquer trocado ajuda, mas a discussão de política fiscal no Brasil já passou desse estágio. Debatemos hoje se a política fiscal auxilia o controle da demanda, reduzindo a pressão sobre a taxa de juros, ou se, pelo contrário, é fator adicional sobre essa variável.
Nesse aspecto, não deveria restar dúvida de que a natureza dessas receitas é distinta da tributação. A começar porque receitas de concessões são eventos não recorrentes, mais semelhantes à venda das joias da família do que uma fonte de rendimento constante.
Assim como não é difícil concluir que uma família que venda seus bens para financiar seu consumo corrente irá inevitavelmente passar por dificuldades, também um governo que financie gastos adicionais pela venda de seus ativos irá, cedo ou tarde, enfrentar o momento da verdade.
Já no caso de dividendos, é bom lembrar que ao aumento do caixa do Tesouro corresponde a uma redução do caixa das empresas públicas, ou seja, no setor público como um todo o efeito é nulo (ou negativo, pois há acionistas minoritários).
Adicionalmente, parcela considerável do aumento dos dividendos recebidos pelo Tesouro resulta de operações cujo efeito fiscal é, na verdade, negativo.
Imagine, por exemplo, que eu compre uma mercadoria por R$ 10 e a venda a meu filho por R$ 6, que, por sua vez, a revende por R$ 7, me pagando R$ 1 como dividendo. No final das contas, mesmo com o dividendo, o prejuízo é de R$ 3.
Essa operação pode parecer estranha, mas se trata de descrição estilizada da origem dos dividendos pagos pelo BNDES ao Tesouro, financiados em última análise por subsídios do próprio Tesouro.
A diferença é que esses últimos não aparecem nas contas primárias, enquanto os dividendos sim, isto é, temos uma piora fiscal (R$ 3, no meu exemplo), disfarçada como melhora do saldo primário (R$ 1).
Resumindo: por trás das pirotecnias contábeis, há uma piora apreciável das contas públicas, equivalente a 1,5% do PIB, cujo impacto esperado, segundo estimativas recentemente compiladas pelo Banco Central, seria de 0,5% sobre a inflação e de 1,5% ao ano sobre a Selic.
Podemos fingir o quanto quisermos, mas, cedo ou tarde, a conta sempre chega.
ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 47, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central. Escreve às quartas-feiras, quinzenalmente, neste espaço.
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