A "argentinização" da política
Valor Econômico - 08/02/2010 |
Publiquei este artigo na Argentina, em 2009. No final explico a tradução. Fiz adaptações, para adequar o texto ao espaço. "Sou brasileiro, filho de argentinos que por razões profissionais passaram dois anos fora do país no começo dos anos 60 e por razões políticas tiveram que sair da Argentina em meados dos 70. Da mesma forma que o argentino Borges se confessava 'um europeu nascido no estrangeiro', durante parte da minha vida me senti 'um argentino nascido no Rio'. As reflexões que farei a seguir são pessoais, mas refletem o estado de espírito de vários amigos que viveram circunstâncias similares, com a diferença de que todos eles tinham nascido na Argentina. Não por acaso, tendo tido todos nós, depois de 1983, a oportunidade de retornar a Buenos Aires (pela qual cada um de nós conservou a sua paixão), optamos em todos os casos por continuar morando no Brasil. Tendo chegado aqui em 1976, fugindo da Argentina daquela época, algo que me chamava a atenção era que conflitos menores como, por exemplo, batidas de carro, que na Argentina gerariam uma briga de socos e pontapés, no Brasil não raras vezes acabavam em um bar para tomar um chope. Criado na tradição italiana das grandes polêmicas, tendo passado minha adolescência na vertigem dos anos 70 com o país novamente fraturado pela divisão inexorável da sociedade entre peronistas e antiperonistas, aprendi por meio desses pequenos gestos que, como alguma vez disse Fernando Pessoa, ao invés de uma verdade poderia haver duas. Com a impetuosidade da juventude, esse aprendizado não foi imediato. A transição para a vida adulta coincidiu no meu caso com a transição do Brasil rumo à democracia, na qual brilhou a figura de Tancredo Neves. Em 1984, na campanha das 'Diretas já', supunha-se que, se houvesse eleições, seriam vencidas por Ulysses Guimarães. Com a derrota da emenda das diretas, a saída encontrada foi a de 'vencer o regime com suas próprias armas', no Colégio Eleitoral, com um candidato que pudesse ser votado por parte da bancada governista, o que levou à eleição de Tancredo e, depois, à posse de Sarney. Com a impaciência dos 22 anos e participando das passeatas com o entusiasmo de quem sentia estar no meio de uma revolução, vivi aquele desfecho como uma traição e via Tancredo com grande desconfiança, como se ele tivesse traído o povo para se juntar aos inimigos. Os anos me levaram depois à reflexão de que, na verdade, aquilo tinha sido uma excepcional lição de sabedoria política de todos os atores: de Tancredo, grande mestre da transição, respeitado por todos os partidos e capaz de dialogar com diferentes grupos; de Ulysses, que abdicou de suas legítimas pretensões e, ao invés de fazer arder o país numa campanha de destino incerto, soube dar um passo ao lado ao entender que o momento histórico requeria ceder a liderança a outra pessoa - algo muito difícil para um político - com menos resistências do regime que estava acabando; e dos próprios militares, que reconheceram que seu ciclo tinha que chegar ao fim e estavam dispostos a sair de cena, mas não queriam fazê-lo como derrotados. O que a geração de argentinos que vieram ao Brasil nos anos 70 foi notando com o passo das décadas é que as histórias diversas de nossos países - e falo como brasileiro - eram também o reflexo da diferença entre a atitude das pessoas de um lado e de outro da fronteira. Isso ficava claro quando íamos de férias à Argentina e saíamos para conversar com os amigos. Eram sempre discussões muito diferentes em relação às que estávamos acostumados a ter aqui, em função das simpatias que cada um de nós ia desenvolvendo com os grupos políticos locais. Enquanto que no Brasil era natural aceitar as divergências e elas quase nunca comprometiam as amizades, ir à Argentina - já como visitantes - era submergir em um turbilhão de insultos e ressentimentos: os 'outros' não eram pessoas que apenas tinham opiniões diferentes, mas 'vendidos', 'traidores' ou coisas piores. Em outras palavras, inimigos que deviam ser destruídos. Com o tempo, o sentimento comum a todo esse grupo de amigos foi o cansaço ante essa forma, em última instância, de viver. Descobrimos que tínhamos optado pelo Brasil, não por gostar mais de tomar um chope que um café em uma confitería portenha; não por preferir o samba ao tango; mas sim por ter aprendido a conviver com a diferença e a apreciar a tolerância, ao invés de fomentar a cultura do ódio e do desprezo. Os sinais do crescimento desse traço cultural são visíveis na Argentina, lembrando as disputas enlouquecidas ocorridas há mais de 30 anos. O 'ovo da serpente' está na virada da esquina. O fato de ser brasileiro e de trabalhar em um órgão oficial me inibe de manifestar minha opinião franca sobre a responsabilidade das autoridades para que se tenha chegado à situação de tensão atual. Com a vantagem de conhecer a idiossincrasia e a história de ambos países, há algo, porém, que posso afirmar: a Argentina precisa, desesperadamente, de um Tancredo, que seja capaz de conversar com todos". Deixo a tradução de lado. A experiência de ter vivido em quatro países diferentes ao longo da vida me ensinou a analisar os fatos com olhos de quem vê um país de fora. E sou obrigado a constatar com pesar que a política brasileira se parece, em certo sentido, cada vez, mais com a argentina. Basta frequentar os insultos que circulam no mundo da web para constatar as dificuldades de diálogo. As pontes são cada vez mais escassas. O discurso do antagonismo de "nós x. eles" - perigosamente estimulado desde os palanques, numa campanha absurdamente antecipada - e a noção de que o rival é um inimigo tornam rarefeito o clima político. Governo e oposição conversavam mais no Brasil nos anos 70, na época dos militares, nas pessoas de Petrônio Portella e de Ulysses, do que hoje, apesar de o PT e o PSDB terem nascido da mesma costela do MDB paulista. Comparando o Brasil de 2010 com o daqueles anos, a conclusão é que nossos políticos enriqueceram - mas a política se empobreceu. |
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